Titulação de Bolsonaro vai deixar famílias assentadas sem terra novamente

Foto: Tiago Giannichini / MST

Desde o golpe de 2016 o direito à terra para quem nela trabalha e a reforma agrária têm sofrido sucessivos ataques. A situação foi agravada pelo governo Jair Bolsonaro, como o desmonte das políticas agrárias e de incentivos à agricultura familiar. A demarcação de terras indígenas e quilombolas também foi suspensa e as políticas de fiscalização ambiental, destruídas. Entre os mais recentes ataques está o programa de titulação de propriedades rurais, o Titula Brasil criado pelo governo federal, denuncia o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). O programa retira as atribuições de titulação e regularização fundiária do Ministério da Agricultura e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e transfere para as prefeituras. Dessa forma, fica facilitada a regularização da grilagem de terras. Isso porque, nos municípios, o poder de pressão dos latifundiários, das empresas e parlamentares ligados ao agronegócio é maior.

“Também cresce o assédio e pressão desses grupos e, do próprio Incra, às famílias assentadas em ‘optar’ pela titulação privada da terra, por meio do Título de Domínio (TD). Isso, em seguida, possibilita a venda das terras destinadas à reforma agrária, tirando dos assentados o próprio direito à terra, conquistado de forma coletiva, a partir de anos de luta das famílias Sem Terra”, afirma a assentada no Ceará e dirigente do setor de produção do MST, Antônia Ivoneide, a Neném.

“O que está por trás de tudo isso é o grande interesse do agronegócio de se apropriar das terras públicas. Porque é muito mais fácil nas prefeituras a pressão ser ali direto, do que no nível federal”, explica Neném.

Privatização da terra

Para Dilei Schiochet, da Direção Nacional do MST na Paraíba, o que está por trás do programa Titula Brasil é um retorno à privatização das terras do país. Além da apropriação das terras dos assentamentos de reforma agrária, que depois de tomadas serão colocadas à disposição do mercado.

“Vem para extinguir com o processo de reforma agrária, porque ao titular eu deixo de ser público da reforma agrária e passo a ser um “agronegocinho”, um pequeno agricultor”, denuncia Dilei Schiochet. “E perdemos todos os benefícios que conquistamos para as áreas de assentamentos como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o crédito moradia. E perdemos uma coisa muito preciosa que é o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). Quantos filhos de assentados hoje entraram na universidade porque eram beneficiários da reforma agrária e hoje estão nas nossas escolas, se capacitaram?”

MST defende outra proposta

Antônia Ivoneide explica que o movimento não é contra a titulação de terra, mas defende para os assentamentos da reforma agrária popular a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). Esse documento garante às famílias assentadas a posse da terra e, dessa forma, evita que se perca o direito de permanência na terra e as políticas conquistadas.

“O MST discute que a CDRU é importante porque legitima como título definitivo a posse do assentado, dá segurança jurídica e garante a posse regulamentada. E também a sua permanência na terra”, avalia. “Ser dono da terra não significa que precisa ter um título privado. O que importa pra nós é ter essa terra como nossa, mas como posse, e estar garantido dentro do processo da reforma agrária.”

A partir da criação de um assentamento, a lei garante um título provisório, o Contrato de Concessão de Uso (CCU), que regulariza a situação do assentado perante ao Incra e aos órgãos jurídicos. A CDRU é um título definitivo, por meio do qual a família assentada tem o direito à posse da terra assegurado. Isso também garante acesso aos créditos e outros direitos e benefícios da reforma agrária. Essa modalidade dá direito, ainda, à herança, garantindo que a terra seja passada de pai para filho ou até mesmo para outra família, nas mesmas condições de acesso à reforma agrária. “Portanto, nos assentamentos em que as famílias optarem pelo CDRU, além de conquistar o direito definitivo à posse da terra, também permanecem como beneficiárias das políticas de reforma agrária”, explica.

Próximas gerações

O MST discute com as famílias assentadas sobre o processo de titulação desde 1998, com a elaboração de documentos e propostas da Constituição Federal. No capítulo da Reforma Agrária, artigo 189, está prevista a titulação definitiva da área por concessão de uso ou título de domínio privado. Esse debate se aprofundou na base do movimento a partir de 2014, em um cenário de pré-golpe, e, em seguida, com o desmonte das políticas de reforma agrária.

Nesse contexto, Neném ressalta que o MST busca conscientizar as famílias assentadas sobre o cuidado para que a opção pelo título garanta a segurança jurídica dos trabalhadores, mas não permita a perda do direito à terra para as próximas gerações. Ao contrário disso, o Título de Domínio (TD) é um título privado, que permite a comercialização da terra, porém somente após dez anos, depois do pagamento da terra junto ao Incra. Caso opte por esse título, a família assentada não tem a segurança de permanecer na terra e perde o acesso aos direitos, benefícios e créditos destinados aos assentamentos, se tornando um pequeno produtor privado.

Neném reforça que já é grande o assédio sofrido pelas famílias assentadas por parte do Incra, das prefeituras, de empresas e políticos do agronegócio em “optar” pelo TD. E há uma tendência que esse assédio se amplie, na medida em que essas famílias também devem ficar isoladas ao perder os benefícios e o apoio que contavam como assentadas. Nesse sentido, a dirigente acrescenta, que o resultado diante da “opção” pelo título privado, além de promover a privatização da terra, faz com que “os jovens, as crianças de hoje, e as pessoas que estão vivendo nos assentamentos percam o direito de herança da terra, e o direito de permanecer com a posse da terra”.

Resistência à titulação

Para evitar que os assentamentos conquistados em anos de luta pelas famílias Sem Terra sejam privatizados pelo processo de titulação, o MST está produzindo materiais informativos e realizando debates que reafirmam a opção pela Concessão de Direito Real de Uso (CDRU).

A dirigente nacional Dilei Schiochet destaca a importância da continuidade do trabalho de base com as famílias, para aprofundar a compreensão de que a terra é um bem natural e deve estar a serviço do povo. “Nós temos um grande trabalho de resistência com a nossa base, para informá-la e formá-la. Não no sentido de negar o título. Todas as famílias têm direito ao título. Mas não um título que empenhe a terra num banco ou um título que uma empresa privada possa se apropriar, para se apropriar da terra”.

Foto: MST/PI

Já no Piauí, a titulação dos assentamentos está acontecendo como em vários outros estados, e apesar de haver muita propaganda, o Incra tem agido aos poucos, primeiro em áreas sem a organização do MST. Isso porque, segundo o dirigente nacional do estado, Josiel da Silva Santos, “eles já sabem da nossa posição”. O Incra tem chamado empresas para irem até as áreas oferecerem aos assentados serviços de demarcação de terra. Ele alerta que “essas empresas que estão indo nos assentamentos, cobram pelo valor de demarcação. É um absurdo”.

Pressão

Mesmo com toda pressão, as famílias assentadas seguem resistindo e debatendo a questão em vários locais, o que contribuiu para que dois assentamentos do MST no Piauí conquistassem a CRDU por meio da organização interna, fazendo a opção por este documento em detrimento do título privado.

No entanto, tais áreas foram conquistadas por meio do Instituto de Terras do Piauí (Interpi). E foi por ele que passaram as concessões reais de uso do assentamento 8 de Março, titulado em 2019, no município de Teresina, dadas individualmente a cada família. Já no assentamento Jaelson dos Santos, no município de Pio IX, a CDRU foi conquistada coletivamente este ano, em nome da associação do assentamento.

Alerta em SP e RS

As possibilidades, no entanto, variam de acordo com a realidade dos territórios. Em São Paulo, por exemplo, o governo de João Dória, por meio da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), está seguindo a linha do governo federal. Com isso, as áreas públicas do estado destinadas à reforma agrária também podem ser privatizadas. São diversos os impactos disso.

Foto: MST

Para o dirigente estadual Delwek Matheus, a proposta “é inconstitucional” e “certamente vai impactar na desagregação das comunidades”. Ele alerta para a ameaça dessa perda de identidade e os impactos da ameaça da monocultura sobre os bens naturais. O MST propõe que o projeto seja retirado da Assembleia Legislativa de São Paulo e orienta as famílias a optarem pela CDRU.

No caso do Rio Grande do Sul não é diferente. Ildo Pereira, da Direção Nacional do MST no estado, relata que há uma ofensiva por parte do Incra. Articulada por meio da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) do estado, tem pressionado as famílias assentadas em adotar o TD. O MST, porém, vem discutindo e organizando formas de resistir a isso junto às famílias assentadas.

Projeto consolidado

Os principais assentamentos pressionados pela titulação são onde o projeto de Reforma Agrária Popular do MST está mais consolidado. Como a Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap), em Eldorado do Sul, que produz arroz orgânico. E no Assentamento Roça Nova, em Candiota, que abriga a Rede de Sementes Agroecológicas BioNatur. Porém, a titulação privada acarreta várias dificuldades aos assentados, que deixam de receber créditos federais, destinados aos assentamentos pelo Incra, e passam a depender das prefeituras.

“Na região metade sul do Rio Grande do Sul, historicamente pouco desenvolvida, o município não tem condições de fornecer uma política pública para ajudar os assentamentos, isso acarreta diretamente em prejuízo pras famílias assentadas”, resume Ildo.

Por Rede Brasil Atual

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