Em artigo publicado nesta segunda-feira (15), a deputada Margarida Salomão (PT-MG) analisa a tentativa da direita de destruir o “mito Lula”, campanha que faz parte da estratégia para impedir a continuidade do projeto de transformação social inaugurado pelo PT em 2003.
Citando o poeta português Fernando Pessoa e mitos menos incômodos para a elite brasileira, como Joaquim Barbosa e Silvio Santos, Margarida – que é ex-reitora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) – explica a razão do ódio dirigido ao presidente “filho de analfabetos, imigrante nordestino e operário”. Confira o artigo.
“Lula: por que defender o homem e o mito”
Margarida Salomão*
“O mito é o nada que é tudo”. O primeiro verso de Fernando Pessoa no poema Ulisses epigrafa a reflexão que devemos fazer sobre o que está acontecendo ao presidente Lula neste momento da história brasileira.
Lula não era nada. Pobre, filho de analfabetos, imigrante nordestino e operário. Posteriormente sindicalista, deputado, fundador do PT e, audaciosamente, candidato à presidência da república. Como não era nada, apenas uma voz dissonante que acreditava na democracia e, principalmente, acreditava que era possível e necessário acabar com a desigualdade, a fome e a miséria neste país, perdeu a eleição três vezes. Mas não perdeu a esperança.
Por isso, tornou-se tudo. Dentro de um contexto de extrema adversidade – dívida externa, recessão, desemprego – virou um gigante. Falando para cada um, em cada canto desse país, que era possível fazer diferente, contagiando as pessoas com o seu sonho. O projeto antes remoto, abstrato, amorfo revelou-se um campo de possibilidades que pulsava, vibrava e movia o povo. Criou-se o mito, que eleito e reeleito presidente, realizou o melhor governo da história deste país. Começou-se a construir um futuro glorioso, não para as velhas elites oligárquicas, ou para os eternos donos de tudo; glorioso para quem foi como Lula no passado: nada.
Por ser um homem-mito, que alimenta os sonhos daqueles que não tinham perspectiva de futuro, passou a parecer perigoso. Na história recente, não há ninguém vivo na esquerda mundial que possua uma trajetória de vida como Lula. Sua biografia tem um teor subversivo capaz de desestabilizar o status por encarnar historicamente a esperança dos que não têm.
Característica de seu legado, democrata, republicano e negociador, é não ter optado pelo enfrentamento radical da conjuntura, alavancando mudanças mais estruturais, mais profundas. Talvez, por este ponto, tenha sido ingênuo ou presunçoso, imaginando que a elite, tendo sido também beneficiada nos seus governos, lhe seria grata pela eternidade.
Não se trata de questões morais, mas de práticas secularmente inculcadas na nossa cultura que naturalizam, por exemplo, que o anti mito Joaquim Barbosa adquira um apartamento luxuoso em Miami, ou que, o self made man Silvio Santos tenha salvado o seu banco Pan Americano em negociação com o “amigo do Aécio”, André Esteves, preso na Lava Jato.
Joaquim Barbosa e Silvio Santos, um negro e o outro camelô, têm aval para fazerem o que quiserem porque são exceções, fazem jus a seu “mérito”: não ameaçam a regra, não abalam as estruturas. Entretanto, o nordestino operário que ousou ser presidente foi longe demais. Ele não só subiu na vida como também levou muita gente junto. Tirou mais de 20 milhões de pessoas da miséria, elevou 42 milhões à classe C e, atrevidamente, criou onze novas universidades federais, além de programas como o Prouni e as cotas raciais que mudaram definitivamente a cara das instituições universitárias e as perspectivas de futuro da juventude pobre, negra, da periferia e do interior.
É fato que muito do que foi conquistado está hoje ameaçado pela crise econômica mundial e, principalmente, pelo rancor dos que nunca aceitaram que um operário, com curso técnico, fosse “o cara”, e tirasse o Brasil da condição subalterna. Assim, é necessário desgastar a aura do mito, banalizá-lo, reduzi-lo a homem comum, expor suas fraquezas, escancarar e agravar suas feridas. Mais, é preciso criminalizar o mito. Acabar com toda sua força propulsora, eliminar sua potência.
E fazem isso com toda desfaçatez porque, no senso comum, sempre gotejou a ideia de que pobre quando chega ao poder faz algo errado. Então, conservadores, mídia reacionária e o poder judiciário que, recentemente, virou Deus na política brasileira, empenham-se, teratologicamente, em transformar o mito Lula na encarnação da corrupção.
Está em curso uma desqualificação generalizada da esquerda que abre caminho para uma hiperaceitação da direita. Isso é tático. O bolo está menor e não dá para todos. A esquerda defende o bem comum e a inclusão social, enquanto a direita busca defender seus próprios bens e a “liberdade” para acumular mais. Se não há bolo para todos como fatiá-lo?
A crítica moralista àqueles que teimaram, com todos os erros e acertos, a colocar na ordem do dia o combate às desigualdades e a toda forma de exclusão, tem somente uma finalidade: esconder que o problema é sistêmico. E para a sobrevivência desse sistema ganancioso e corrupto é fundamental matar o mito e manter-nos sob controle por meio do medo e do ódio. Não é para romper com práticas seculares que querem que nos sintamos traídos e enganados. É para perdermos a esperança, para achar que não tem jeito, para ficarmos apáticos e mais distantes dos espaços de decisão.
É preciso matar o mito para matar a nossa capacidade de sonhar e agir de forma inesperada. Quando sonhamos, conseguimos nos libertar das amarras e buscar outros caminhos e possibilidades. Em tempos de crise, é letal este abandono. Não podemos nos deixar contaminar pela desesperança, pela apatia, pelo medo. Temos que lutar. Não só por Lula: por nós mesmos. Porque uma sociedade sem a utopia de sua emancipação , como profetiza Pessoa, está liquidada. “Em baixo, a vida, metade/ De nada, morre”.
*Margarida Salomão é deputada federal (PT-MG) e ex-reitora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
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