Política no sertão

emiliano_artigoEm artigo publicado no site Terra Magazine, o deputado Emiliano José (PT-BA) (foto) fala da sua participação na Jornada Internacional de Cinema que homenageou Euclides da Cunha. Emiliano discorre sobre o sertão e o sertanejo. “O sertanejo é antes de tudo um forte”, diz trecho. Leia a íntegra:

Política do Sertão

Por Emiliano José

A Jornada Internacional de Cinema, já em sua XXXVI edição, sempre me provoca. Participei como coordenador de uma das mesas, e novamente me senti estimulado ao debate. A Jornada, este ano, prestou homenagem a Euclides da Cunha, o imortal criador de Os Sertões. Os muitos debates e vários filmes giraram em torno do intelectual e desse episódio fundamental da história brasileira – Canudos. Um dos participantes exibiu, no decorrer dos debates, um exemplar raríssimo, uma primeira edição de Os Sertões. E uma jornalista lembrou uma crônica de Euclides da Cunha, denominada Última Visita, publicado no dia 30 de setembro de 1908, pelo Jornal do Comércio, tratando da visita de um jovem aparentando entre 16 e 18 anos a Machado de Assis na noite em que este viria a falecer.

Ninguém conhecia o jovem que se anunciara com tímidas pancadas na porta principal da casa. Perguntaram-lhe o nome. Não o disse. Declarou ser desnecessário dizê-lo. Havia lido que o escritor estava em estado gravíssimo, admirava-o muito pela leitura de seus livros, e queria vê-lo. Anônimo, o jovem foi conduzido ao quarto do doente. “Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra saiu.” À porta, José Veríssimo perguntou-lhe o nome. “Disse-lho. Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis – aquele menino foi o maior homem de sua Terra”.

O menino, mantido respeitosamente no anonimato por Euclides da Cunha, se saberá apenas em 1936, era Astrogildo Pereira. A Jornada, tão cuidadosamente mantida por tantos anos pela garra do cineasta Guido Araújo, é capaz de produzir uma revelação como essa, que me encantou. Não é, no entanto, especificamente dessa revelação que queria tratar. Queria falar do sertão, do sertanejo, do sofrimento, da alegria e da esperança. Aventurar-me por essas falas. Foi do sertão e do sertanejo que Euclides da Cunha cuidou em seu Os Sertões. E há um trato permanente do sertão e do sertanejo em nossa literatura. Só cito uma obra, inesquecível, para exemplificar: Vidas Secas, de Graciliano Ramos, onde Fabiano, Sinha Vitória, a cadela Baleia, as crianças, a mulher, inesquecíveis personagens revelam o Nordeste retirante e a força paciente do sertanejo.

Canudos é um episódio fundamental para entender o sertanejo. Em Canudos se revelou o espírito de luta do homem e da mulher do sertão. Canudos não se rendeu. Resistiu até o fim. Até o último homem. Toda a mística de Canudos gira em torno disso. E é uma mística fundada na realidade. Conselheiro magnetizou seus homens, mulheres, velhos, crianças, de modo que eles não se aterrorizassem com tanta superioridade armada. Foram necessárias quatro expedições para derrotar os canudenses e milhares de soldados para consumar a chacina.

A República se pôs em armas para derrotar aqueles fanáticos, que haviam se disposto a criar um modo próprio de vida, baseado na solidariedade e na terra comum. Não quero tratar especificamente do episódio, que depois de Os Sertões rendeu um incontável número de escritos, no Brasil e no mundo. Trato apenas, e aligeiradamente, das ideologias que o cercam, laicas e religiosas. A Igreja Católica, aliás, oficial e oficiosamente, mantém Canudos vivo. Lembro-me de padre Enoque mobilizando multidões no sertão de Canudos, andando por todas aquelas paragens, peregrinando por Euclides da Cunha, Monte Santo, Uauá, Canudos, por todo o cenário da guerra, e entoando cantorias, muitas delas vindas da voz e autoria de Fábio Paes, extraordinário artista do povo, que estava à mesa comigo no domingo, 13 de setembro.

O que retenho é a frase de Euclides da Cunha: o sertanejo é antes de tudo um forte. Talvez disso não se retire todas as conseqüências. Não é incomum uma espécie de elogio da inércia em muitos debates atuais. Fala-se no sofrimento, na miséria do povo sertanejo, e simultaneamente, numa quase paralisia do homem do sertão. Como se nada até hoje houvesse se modificado. Uma ideologia cheia de lamento e que afasta a política. Isso aparece, volto a dizê-lo, tanto em ambientes religiosos, mais propícios a essa visão de mundo, quanto também em cenários laicos onde a doença infantil do esquerdismo predomine. O sertanejo seria forçado a essa paralisia. Estruturas muito poderosas o impediriam de mudar essa realidade.

Tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. Esse é canto-lamento que volta e meia se ouve. Os governos não pretendem mudar nada, é o que se diz. E não se vê o movimento do mundo. E nem o movimento dos sertanejos, autores de muitas mudanças. As coisas estão no mundo, minha nega. Só é preciso entendê-las. É Paulinho da Viola.

O Nordeste brasileiro hoje, cenário de tantas revoltas, se modificou bastante. E o sertanejo, ao seu modo, continuou lutando. E, ao lutar, muda a realidade ao seu redor. Não na rapidez que desejaríamos nós, os intelectuais. Mas no compasso da correlação de forças que ele divisa à sua frente. Quem andar pelo sertão de Canudos, quem caminhar por todo o Semi-Árido baiano perceberá o quanto há de organização popular, de redes de associações, de sindicatos rurais extremamente ativos, senhores da história, integrados à luta, provocando políticas públicas inovadoras, amparando-se na política dos territórios, tão valorizada pelo governo Lula. O sertanejo sabe que não pode apenas ficar modorrando em baixo da árvore, curtindo a sombra, olhando a calcinada pelo sol. E se modorrar, se ficar assuntando como quem não quer nada, é para pensar no que fazer para mudar aquela realidade. De repente, sai da modorra, da aparente preguiça, da inércia, assim como num raio, para parafrasear Euclides da Cunha, para a política, para exigir dos governos que tomem a si suas responsabilidades ou para integrar-se criativamente às políticas governamentais em andamento.

Quando vejo o governo Wagner, por exemplo, desenvolvendo um programa da qualidade e da extensão do Água para Todos, que já beneficiou mais de 1,5 milhão de pessoas no Semi-Árido, sei que isso é conseqüência não só da lucidez do governador e sua equipe mas, também, da luta dos milhões de baianos que sempre se viram marginalizados pelas oligarquias. Sempre houve a luta pela água no Nordeste, a luta pelo 1 milhão de cisternas, que agora começa a ganhar contornos muito reais, sempre com intensa participação popular, que é como se executa o programa Água para Todos. A luta não pára. A vida não pára, lembrando Cazuza. Na esteira dessa ideologia do elogio do sofrimento, há, ainda, o descarte da política. Às vezes, à esquerda, entra-se no cântico contra a política, tão desenvolvido nos últimos tempos pelo udenismo tardio que assola o País. Em algumas reuniões, há um certo temor em falar de política, da política. Alguns começam com um veja bem.

“Veja bem, queria dizer que há um programa excelente do governo em execução, mas eu não estou querendo politizar o debate, não é isso…” Ouço isso com razoável freqüência. São os envergonhados da política. Parece pecado falar em política como se tudo, inclusive essas reticências quanto à política, não expressasse, elas também, uma posição política. O sertanejo está se rebelando contra isso. Ele participa hoje ativamente da luta política. Claro que não foi apenas o homem e a mulher do sertão nordestino que enfrentaram as oligarquias nas últimas eleições. O litoral também se alevantou. Mas os sertanejos, não há dúvida, depois de muito assuntar, viram que havia muita mentira, muita enganação em toda aquela campanha contra Lula.

Afinal, a vida estava mudando, o governo estava desenvolvendo políticas voltadas para os mais pobres, e se eles estavam contra devia ser em razão do acerto da política. Da política do governo Lula. Eles – os coronéis, os grandes fazendeiros, os grandes chefes políticos do Nordeste – nunca se conformaram com Lula presidente, e por isso queriam derrubá-lo. O sertão nordestino garantiu a eleição de Lula e de muitos governadores na região. O fim dos grotões foi obra dos sertanejos, do avanço de sua consciência. De sua consciência política. Avanços sólidos, novas hegemonias sendo gestadas, Gramsci no sertão. E por fim cabe o registro de que a pobreza, ainda muito real, não elimina o espírito alegre do nosso povo, que não é de festejar o sofrimento. Povo nenhum vive sem cultura, e o povo do Nordeste é da cultura da alegria, é da dança, é do reisado, é do forró, é do maracatu, é da capoeira, é do bumba-meu-boi, é da sanfona, é do arrasta-pé, do forrobodó, e não faz isso somente em meio à bonança. Faz também em cenários de dificuldades, e por isso mesmo, por manter o espírito alegre, a alma em festa, é que está sempre disposto a lutar. Do seu jeito, do seu modo. O sertanejo é antes de tudo um forte.

Publicado no site da Terra Magazine (19/09/2009)

 

 

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