O Brasil testemunhou nessa primeira metade de 2020 um conflito aparentemente fora de qualquer compreensão aos olhos de qualquer cidadão.
De um lado o presidente da República, de outro, seu ministro da Saúde, o ex-deputado e médico Luiz Henrique Mandetta, que no início da gestão operou um desmonte significativo das políticas em andamento, vide o caso do Programa Mais Médicos e do próprio SUS, mas que frente à crise sanitária mundial aproximou-se das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS).
O não alinhamento ao pensamento negacionista do capitão-presidente em relação à pandemia de covid-19 o levou à demissão, em 16 de abril.
Depois da derrubada do ministro, o presidente empenhou-se em consultas, marchas e contramarchas que duraram cerca de trinta dias, em busca de um novo titular para a pasta.
Fixou-se, por fim no nome de Nelson Teich, oncologista de suas relações, que durou menos de um mês no cargo.
Frustrada a segunda tentativa, Jair Bolsonaro optou pelo que lhe pareceu. naquele momento, a melhor saída para a crise: não ter um ministro da Saúde para enfrentar a pandemia de Covid-19, que sempre tratou como uma “gripezinha”.
Ocupação militar
O Brasil passa então a ser o único país do mundo a adotar essa solução original. Prescindir da instância de coordenação das ações na área, o que significa que conscientemente ou não, o presidente da República chamou para si a responsabilidade pelo que viesse a acontecer.
Escolheu o general intendente Eduardo Pazuello, oficial da ativa do Exército, não da reserva, para conduzir, como interino, a ocupação do Ministério da Saúde.
Não se trata de força de expressão. Trata-se de uma ocupação militar, materializada na troca de vários postos de coordenação do corpo técnico do Ministério por oficiais do Exército. Uma das justificativas apresentadas era a necessidade de destravar gargalos de logística para conduzir a bom termo o combate à pandemia.
Despreparados
Segundo esse raciocínio peculiar não se tratava de conduzir uma política de saúde pública – com a qual o general interino deixou claro desde o início não ter a menor familiaridade – em meio à maior calamidade sanitária já registrada na história do Brasil.
Tratava-se de resolver problemas de transporte de equipamentos, agilizar fluxo de recursos, armar tendas para instalar hospitais de campanha, etc.
Em 16 de maio, dia da posse do general Pazuello, o Brasil contava 233.142 casos identificados de Covid-19 e 15.633 óbitos.
Cinquenta e nove dias depois, o país registra 1.926.824 casos identificados e 74.133 óbitos por Covid-19, com uma média de 1.052 mortes diárias na última semana. Os números falam por si.
Quadro de terror
Em sã consciência, não se pode dizer que se trata exatamente de um triunfo da lógica da intendência imposta nos últimos dois meses ao Ministério da Saúde. Segundo consta, o vírus teria contaminado o próprio Presidente da República, protagonista de inúmeros atos de exposição pública para sabotar as recomendações de isolamento social da OMS.
Não há como negar, a pandemia venceu. Os resultados são colhidos hoje pelas famílias mais pobres da sociedade brasileira. Como sempre. Seriam maiores e mais dramáticos sem o empenho e a abnegação dos profissionais da saúde e em especial dos que atuam no Sistema Único de Saúde (SUS).
Nos últimos dias se percebem sensibilidades estremecidas pela menção, por parte de uma eminente personalidade do judiciário, o ministro Gilmar Mendes, à expressão “genocídio”, utilizada para definir a tragédia em curso. Bateu numa perna quebrada, como afirma ele próprio.
As reações provêm particularmente de dirigentes das Forças Armadas.
Foi emitida uma nota expressando indignação pelo fato de Gilmar Mendes associar indevidamente, na visão dos militares, a imagem do Exército ao genocídio.
A nota foi assinada pelos chefes das três armas, secundada pelo vice-presidente da República, Hamilton Mourão, que cobra do ministro do STF, de forma incisiva: “Tem que se retratar!”
Genocídio
Que nome dar a essa tragédia? Fatalidade ou genocídio?
A julgar pelo conteúdo da nota há um incômodo dentro das Forças Armadas sobre essa definição.
Se aceitarem como uma fatalidade devem admitir uma incompetência criminosa que contribuiu para ceifar dezenas de milhares de vidas de brasileiros, sobretudo entre os mais pobres.
O que exige a interrupção urgente da lógica da intendência implantada no Ministério da Saúde é a remoção imediata do general interino. Se a extensão da tragédia se configura como genocídio, é necessário que o País, por meio de suas instituições, se prepare para responsabilizar seus autores.
Na sua incessante fuga para a frente, que vai da afirmação inicial da “gripezinha”, ao negacionismo impenitente da realidade, à sabotagem aberta às recomendações da OMS seguidas pelos países civilizados, o governo Bolsonaro perpetrou uma sucessão de desvarios que resultaram na maior calamidade sanitária em 500 anos de história.
E, lamentavelmente vem contando com o auxílio ativo de segmentos das Forças Armadas, que viram nele uma oportunidade de retornar ao poder e ataram sua imagem à aventura de um governo que não se cansa de demonstrar por suas ações o descompromisso com as instituições democráticas, com a soberania nacional e, durante os últimos meses, agrega uma doentia insensibilidade e indiferença frente à tragédia vivida pelas famílias brasileiras alcançadas pela Covid-19.
Vidas Importam! Fora Bolsonaro!
Paulo Pimenta é deputado federal (PT-RS)
Artigo publicado originalmente no site VioMundo