Vivemos um momento histórico mundial que nos desafia. Fiquemos com a difícil realidade brasileira. Além do coronavírus e da fragilidade assustadora em que se encontra o sistema público de saúde e outras políticas públicas voltadas para a defesa e promoção da vida, temos um presidente da República que celebra a morte, o ódio, a violência, a ditadura.
Trabalho um cenário, existem outros é claro, segundo o qual Bolsonaro não é um presidente tão fragilizado como sugerem algumas pesquisas. Torço muito para que minha análise esteja errada, mas não posso silenciar as inquietações que me assaltam. Cheguei a associar, no passado, a eleição espúria de Bolsonaro às eleições de Jânio Quadros e Fernando Collor de Melo. Tenho hoje sérias dúvidas.
Bolsonaro, ao contrário dos outros mencionados, não parece um ponto fora da curva. Jânio e Collor navegaram ao sabor das ondas, mas não tinham apoios consolidados. Bolsonaro tem apoiadores. Eles estão presentes nas forças políticas e econômicas conservadoras, saudosas da ditadura, formadas pela ideologia neoliberal e o pensamento autoritário.
Bolsonaro entrou firme nos 30% que formam a direita do nosso cenário político e dentro dela construiu um grupo intolerante e sectário de extrema-direita, pronto para as provocações e confrontos que podem se desdobrar em ações violentas. A rigor, já estão se manifestando.
Mais do que o apoio, Bolsonaro está submetendo as Forças Armadas, especialmente o Exército. Os recursos e cargos liberados parece que não foram em vão.
Dentro deste contexto adverso, considero que todas as iniciativas que visam se contrapor ao Bolsonaro são muito importantes – ações judiciais, CPIs, impeachment, novas eleições –, importantíssimas, necessárias, mas não suficientes.
Não se trata de balançar o galho e Bolsonaro cai. Torço para que isto aconteça, e ajudo a balançar o galho. E se ele cair? Quem vai ocupar o galho? Devemos trabalhar, sem perdermos a dimensão do presente, cenários mais longos e difíceis. Além dos apoios e cumplicidade que apontamos, Bolsonaro busca o apoio político do Centrão, que pode lhe dar maioria no Congresso Nacional. Penso que devemos, trabalhando diferentes cenários, buscar ações de curto, médio e longo prazo.
As de curto prazo estão bem encaminhadas no Congresso, junto ao Poder Judiciário, nos espaços possíveis das mídias. As ações de médio e longo prazo referem-se a iniciativas que demandam cada vez mais reflexão e estratégia. Como retomar, aprofundar e ampliar o nosso diálogo com a sociedade? Os 30% que se colocam no campo da esquerda ou centro-esquerda e os 40% que oscilam? Aqui vivemos um grande desafio – reaprendermos nossa escuta, reelaborarmos uma pedagogia política.
Como confrontar o poder dos meios de comunicação? As fake-news? O sentimento de pressa e urgência das pessoas? A sedução dos celulares? As dificuldades que a violência e o crime organizado colocam no diálogo com as comunidades mais pobres? O fascínio das soluções de curto prazo, onde aparecem as soluções ligadas à violência e à ditadura?
O outro desafio, e os dois se articulam e complementam, diz respeito ao que nós, Partido dos Trabalhadores, forças políticas e sociais à esquerda, centro-esquerda, o nosso campo democrático popular, queremos para o Brasil. Qual é o nosso projeto de nação? Onde queremos chegar no processo emancipatório nacional?
Vivemos a partir da vitória de Lula, em 2002, momentos inesquecíveis, políticas públicas e ações vigorosas, sempre presentes em nossas lembranças e corações, que mudaram a vida de milhões e milhões de brasileiras e brasileiros pobres. Muitas dessas boas políticas públicas e obras sociais deverão ser retomadas, aperfeiçoadas e ampliadas, mas temos desafios novos. Como estabelecer efetivamente o primado da vida? Como subordinar os interesses econômicos, sempre muito sedutores e poderosos, o direito de propriedade, a livre iniciativa, a economia de mercado, ao valor maior que deve coesionar a sociedade?
Como aplicar, no plano do direito e dos fatos, o princípio da função social da propriedade e das riquezas, subordinando-as ao direito à vida, ao bem comum, ao projeto nacional? Como adequá-las à preservação da natureza e das fontes da vida? Como acertar os recursos que garantem os direitos sociais básicos, educação de qualidade em todos os níveis, os cuidados preventivos e curativos da saúde, a segurança alimentar, o saneamento básico, a assistência social, o trabalho decente, a moradia digna, o meio ambiente saudável?
Como renovar as leis trabalhistas diante das mudanças no universo do trabalho, que já se apresentam tão concretas, garantindo a defesa daquele que trabalha e não é o dono efetivo do negócio, ainda que precise utilizar seus próprios bens para exercer os serviços?
Como financiar as obras necessárias de infraestrutura? De que maneira construir políticas públicas mais robustas, amparadas pelas bases de dados que tão arduamente estruturamos para entender nosso país e pelos profissionais capazes de fazer a leitura acurada da realidade, tantos deles formados durante nossos governos do Partido dos Trabalhadores?
Penso que na perspectiva desse projeto nacional, de afirmação da soberania popular, das escolhas das prioridades, devemos retomar as práticas da democracia participativa – planejamento e orçamento participativos – vinculados ao desenvolvimento regional. Estes são temas sempre presentes em nossas reflexões e que já trabalhamos em outros textos.
Creio que devemos nos ater a essas e tantas outras questões que lhe são correlatas, refletirmos sobre elas, abrirmos a partir delas um processo crescente de interlocução com a sociedade brasileira, especialmente com os pobres.
Devemos buscar novamente o poder, sabendo dos desafios que ele hoje nos coloca. Não o poder pelo poder. O poder assentado na soberania popular e que nos possibilite construirmos o projeto de nação que priorize a vida e os direitos fundamentais para os atuais 210 milhões de brasileiras e brasileiros e tantos quantos vierem no futuro. Compromisso inarredável com as gerações presentes e futuras desta grande e querida pátria brasileira.
Pelas novas condições de cuidado com a saúde que se apresentam, temos agora uma nova situação: cuidar de todos, sem esquecer ninguém, se tornou fundamental, do modo mais concreto, para manter a saúde de cada família e de cada um. É um novo mundo, realidade inesperada.
Vamos juntos, solidários, enfrentar os desafios presentes e construirmos os alicerces do nosso projeto nacional brasileiro. Não vamos edificar a nossa casa na areia. Lembremos os ensinamentos de Jesus, que começaram de baixo e atravessam os tempos e chegam hoje ao Papa Francisco.
- Patrus Ananias é deputado federal (PT-MG)