Não é difícil encontrar, concretamente ou no imaginário, a figura da mulher que centraliza e gerencia os humores da família. É o filho desempregado, é o colo da mãe que busca. É o conflito entre irmãos, é a matriarca que gerencia. É o marido frustrado por alguma questão, não se espera da esposa nada menos que compreensão, resiliência e assistência emocional (quando não sexual). É o idoso que precisa de companhia, procura-se alguma mulher na família. É o limiar da sobrevivência que bate na porta, é a mulher que vai costurar, cozinhar ‘para fora’, entre outras atividades que combinam (e acumulam) trabalho doméstico e geração de renda.
Essa função de “amortecedor emocional” das famílias tem um custo enorme para a saúde mental das trabalhadoras. Com a pandemia e a crise econômica, o quadro tem se agravado vertiginosamente.
Por exemplo, entre as mulheres responsáveis pelo cuidado de crianças, idosos ou pessoas com deficiência, mais de 70% afirmaram que aumentou a necessidade de monitorar e fazer companhia a alguém durante a pandemia, segundo a pesquisa “Sem Parar: O trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, da Sempre Viva Organização Feminista.
Somado a um quadro já conhecido em que elas dedicam quase o dobro de tempo para os cuidados com outras pessoas ou afazeres domésticos (IBGE, 2019) — são 21,4 horas semanais delas, contra 11 horas exercidas pela população masculina — a fatura não demora a chegar:
Durante a pandemia da Covid-19, as mulheres foram as mais afetadas psicologicamente, apresentando 40,5% de sintomas de depressão, 34,9% de ansiedade e 37,3% de estresse, segundo estudo conduzido pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP.
São elas que se preocupam mais com o uso de máscara, a proteção da família, a higienização e o cuidado sanitário, pois elas bem sabem, geralmente cabe a elas o cuidado integral caso algum familiar adoeça. E na hora que o fardo pesa, as desigualdades aparecem: das mulheres que passaram a se responsabilizar por alguém durante a pandemia 52% eram negras, 50% indígenas/amarelas e 46% brancas, apontou a pesquisa da SOF.
O que é mais-valia emocional
Ou “trabalho emocional” é um termo introduzido pela socióloga americana Arlie Hochschild e diz respeito a esse trabalho “invisível” de disponibilidade emocional permanente para manter a coesão familiar, o bem-estar de todos, o funcionamento doméstico e garantir a reprodução da força de trabalho.
Diante da pauperização mais brutal, são as mulheres que se importam com as crianças e os mais velhos, enquanto seu companheiro tem maior probabilidade de abandonar a família, gastar o salário em bebida e descontar a frustração na companheira. Silvia Federici
Segundo a ONU, em muitos países, incluindo Brasil, apesar da renda total das mulheres ser muito mais baixa do que a renda total dos homens, nos lares chefiados por mulheres há menos crianças gravemente desnutridas.
Em outras palavras, o sistema patriarcal não exige “apenas” os corpos e a força de trabalho não-remunerada das mulheres, exige também o tempo de escuta, de atenção, de cuidado e aquilo que chamam de ‘amor’ — que formam as bases da saúde mental das pessoas.
Ainda assim, apesar da invisibilidade e a desvalorização do trabalho de cuidado, chamado de “improdutivo”, as trabalhadoras seguem cumprindo seu papel na garantia de sobrevivência e reprodução de suas famílias, independentemente do valor que o mercado coloca para suas vidas.
Enquanto umas sofrem, outras terceirizam
Para o capitalismo, não há problema que não se encontre uma forma de lucrar. Em escala mundial, a situação das mulheres migrantes (filipinas, nigerianas, latinoamericanas) em países de primeiro mundo podem ser consideradas a expressão dessa “mais-valia emocional”.
Clarissa Cecília Ferreira Alves, pesquisadora da UFPB, aponta, por exemplo, como assistência e o amor estão sendo distribuídos de maneira desigual pelo mundo, de modo que determinadas regiões do globo importam carinho, cuidado, atenção, asseamento e reprodução social do mesmo modo que, em dado momento da história, importaram ouro, prata e outros minérios de regiões colonizadas.
A autora explica que o capitalismo transforma o cuidado em matéria prima valiosa quando se trata de “emancipar mulheres de classe social elevada” — apenas retirando a sobrecarga de um grupo de mulheres e transferindo para outro.
No caso da maioria das famílias brasileiras, o fardo segue invisível, desvalorizado e pesado sobre as costas das trabalhadoras por meio do trabalho não-remunerado e “naturalizado” — fazendo com que as mulheres, por conta da crise econômica, tenham que assumir essa jornada integral ou, em muitos casos, se sujeitar a cuidar de outras famílias em detrimento da própria.
E essa angústia que nunca para?
O nó na garganta, a ansiedade e o stress das mulheres podem ser fruto do desgaste desse amortecedor que precisa dar conta de tantas facetas: crianças fora da escola, cuidado de idosos, estabilidade emocional de cônjuges e agregados, vulnerabilidade social e econômica dentre outras complexidades inerentes à esfera privada — mas com raízes e soluções de ordem pública e coletiva.
Segundo a pesquisa da SOF, as dinâmicas de vida e trabalho das mulheres se contrapõem ao discurso de que “a economia não pode parar”, mobilizado para se opor às recomendações de isolamento social. Os trabalhos necessários para a sustentabilidade da vida não pararam, pelo contrário, foram intensificados na pandemia. Mais de 50% das mulheres passaram a cuidar de alguém durante a pandemia.
“O desgaste emocional das mulheres é um problema estrutural patriarcado. No entanto, combinado com um governo que precariza a vida das trabalhadoras com aumento da conta de luz, alta dos alimentos, preço do gás, da gasolina, retirada de direitos e tudo mais — temos um cenário de verdadeiro colapso da saúde mental feminina. Saídas individuais são importantes para o bem-estar, mas a raiz do problema é coletiva. Por isso, é importante uma sociedade mais justa, humana e democrática — que só é possível tirando Bolsonaro do poder”, sintetiza Anne Moura, secretária nacional de mulheres do PT.
Por PT Nacional