“Eu não posso abandonar a luta enquanto há condições de lutar. E eu escrevi na prisão. Escrevi sentado em uma cama, sem mesa e cadeira com uma luz muito ruim. Escrevia aos sábados e domingos. Sexta é dia de visita, então existe uma depressão pós visita que é uma coisa séria. É o dia que vem a lembrança da família, dos filhos, da mulher amada, da casa das filhas. Quem insistiu para eu escrever as “Memórias” foi Simone, minha mulher. Ela dizia: ‘Sua filha tem que conhecer sua história, contada por você’. Ela é a mais nova, só tem 7 anos”.
Foi nessas condições que José Dirceu, então encarcerado, escreveu o livro de suas memórias. Mas não são memórias apenas do homem, pai, dirigente, ministro e militante. Mas parte importante da história recente do Brasil, quando uma juventude se levantou contra a Ditadura, passando pela construção do Partido dos Trabalhadores – hoje o maior partido de esquerda da América Latina – até os bastidores do primeiro governo progressista do Brasil.
Em uma entrevista exclusiva à Agência PT, concedida em Brasília, Zé Dirceu falou sobre sua vida, registrada pela primeira vez no livro “Memórias – Volume 1” desde a infância e juventude em Passa Quatro, interior de Minas Gerais, até o ano de 2006, quando deixou o governo federal.
De Passa Quatro ao exílio
“Meu pai era tipógrafo, tinha o que eles chamavam de papelaria. Fazíamos tudo, convite, cartão… Então eu cresci lendo muito, sempre fui viciado em leitura. Uma vez entrei numa gráfica e vi aqueles caixotes enormes, muita tecnologia, na loja do meu pai era assim que fazíamos (ele imita com os braços o movimento da prensa)”. Dirceu fala com muito carinho de sua vida em Passa Quatro junto a seus pais e quatro irmãos. Para ele “viver entre as montanhas e no limite de São Paulo e Rio” facilitou sua mudança para a capital paulista, onde despertou para o movimento estudantil.
Ele conta que a “revelação” aconteceu quando ele viu, em 31 de março de 64, dia do golpe militar, uma manifestação de estudantes do Mackenzie, filhos da classe média, comemorando a tomada do poder pelos militares. “Entendi que eu, estudante e pequeno assalariado, havia perdido. E que os iguais a mim – a grande maioria – também eram perdedores. Naquele instante, escolhi
o meu lado.”
Aí começa a história de militância, que tem como ponto alto da história de Zé – e do Brasil – o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. “Eu estava na cela e um companheiro falou: ‘Cabeleira, seu nome tá na lista’. Eles me chamavam assim porque tive cabelo comprido, tipo o seu (apontando para a repórter). Foi quando eu vi que tinha acontecido”, conta Dirceu. Dali, ele e mais dez companheiros seriam levados para o Galeão de onde sairiam para o exílio.
Mas as coisas poderiam ter sido diferentes. Dirceu conta que percebeu uma movimentação antes do embarque, mas não sabia do que se tratava. “Tempos depois eu soube uma dissidência estava lá para nos fuzilar”. E assim, Dirceu embarcou para o exílio em Cuba, não sem antes erguer os braços e mostrar as algemas, sinal que marca uma das poucas fotos na entrada do grupo no Hércules.
“Dos onze hoje somos três”, conta ele nos dedos ao ser questionado sobre sua relação com os companheiros de exílio.
Clandestinidade
Dirceu conta em seu livro sobre seu treinamento em Cuba, a disciplina e a recepção por Fidel Castro. Questionado sobre suas “entradas” no Brasil, ele conta que as fazia pela fronteira com a Colômbia. “Fiz uma plástica e fui pra Rússia, de lá andava por uns países da Europa, trocava de nome e passaporte e voltava”.
Até que um dia ele voltou. Seu destino foi Cruzeiro do Oeste (PR). Era 1975 e Dirceu, naquele período, viveu uma outra identidade, se casou e teve seu filho Zeca Dirceu, hoje deputado federal pelo PT. “Eu não falava de política. Tinha uma vida comum. Me lembro de receber cartas criptografadas com os avisos de morte de meus companheiros e chorava sozinho no escritório. Guardava tudo em um fundo falso de uma mesa”.
Fundação do PT, Lula e a “ditadura da toga”
Um dos 111 signatários da ata de fundação do PT, Dirceu conta com carinho como conheceu Lula, então metalúrgico através de Paulo Vanucchi e Frei Betto. Dirceu fala sobre o preconceito das elites e dos ataques ao ex-presidente quando ele assumiu a Presidência.
“Diziam que Lula não tinha diploma universitário, não era estudado. Mas vou te falar uma coisa. O Instituto da Cidadania, os seminários que ele fez durante anos foi a grande formação dele. Na verdade sua formação foi a vida. Mas nessa época muitos acadêmicos, servidores e ex-ministros até da direita participavam desses seminários. Essa foi a grande universidade que Lula cursou. Lula como presidente do Brasil – e eu convivi 30 meses com ele – é o maior estadista desse país. Não existiu outro igual ao Lula. Ele tem competência, sagacidade, sabe conviver e dialogar com todos os conflitos de interesses, todos os setores sociais, porque ele sabe governar. Basta ver o que o país virou hoje”.
Dirceu volta sua crítica para a imprensa golpista que persegue as lideranças petistas e cria o que ele classificou como “fake news”, citando seu caso com a AP 470. “A maior responsável pelo golpe é a Globo. Ela expressa os interesses do capital financeiro e das elites, daquele 1% que quer comandar o Brasil. Ela atua para restringir nossa democracia e quer uma eleição controlada”.
“Tenho 72 anos, mas me chame de Zé”
E foi assim que ele se apresentou. Depois de quase duas horas de bate papo, Dirceu desabafa: “Se não fosse a militância eu não estaria aqui. Por isso acho que meu livro é um recado principalmente para os jovens. Eles levaram na mão o poder em 2016. Precisamos aprender com isso”. E foi assim, mesclando bastidores da história do país com sua vida pessoal que Zé se despediu e disse: “Tenho um compromisso com minha filha. Mas contem comigo. Vou rodar o país com meu livro”. Agora ele segue para uma agenda de lançamentos pelo país, começando por Brasília, onde vai realizar uma coletiva de imprensa no dia 29 e depois no Rio de Janeiro, já no dia 4 de setembro no Circo Voador.
Agência PT de Notícias
Foto: Lula Marques