Ninguém está acima da lei. Mas ninguém pode estar abaixo dela. Esse princípio moveu os coordenadores e autores reunidos no livro O Caso Lula – A luta pela afirmação dos direitos fundamentais no Brasil, que chegou às livrarias na terça-feira (6). Uma constelação de advogados, promotores, acadêmicos e juristas, reunidos pelo casal Valeska Teixeira e Cristiano Zanin Martins e por Rafael Valim, analisa os abusos da Operação Lava Jato a partir dos processos contra o ex-presidente. “Como em uma democracia pode-se combater efetivamente a corrupção se isso não for feito de maneira justa?”, perguntam os coordenadores no prefácio. Nilo Batista, Antônio Celso Bandeira de Mello, Mariah Brocado, Antônio Carlos Malheiros e Eugênio Aragão são alguns dos especialistas que emprestam suas ideias à obra. CartaCapital publica com exclusividade, a seguir, um trecho do artigo de Lenio Luiz Streck, doutor em Direito Constitucional e ex-procurador de Justiça.
“A engenharia institucional de um sistema político é algo extremamente complexo, baseado numa série de disputas e acordos entre os diversos segmentos da sociedade, a partir de um pacto constitucional. Na elaboração desse pacto encontramos diversas posições contraditórias, que, por meio de um difícil jogo de negociações de interesses, tornam possível a composição de uma ordem política minimamente democrática.
Assim, as disputas que sempre estarão presentes em qualquer comunidade poderão acontecer a partir da racionalidade jurídica oferecida pelo pacto constitucional, sempre baseado na ideia de limitação do poder e defesa das liberdades. Para a organização desse complexo jogo político foi necessária a criação da ideia de freios e contrapesos, estabelecida pelos estadunidenses.
O Executivo governa e tem poder de veto sobre o Legislativo. O Legislativo faz as leis e fiscaliza o Executivo. A Suprema Corte dá a última palavra sobre a Constituição, para evitar que o Legislativo faça leis inconstitucionais.
O Executivo indica os juízes da Suprema Corte e o Legislativo tem a prerrogativa de confirmar ou não as indicações. Enfim, cada poder deve atuar a partir de um conjunto de regras que impede a ascensão de superpoderes, para que nenhum destes venha a assumir uma posição autoritária de reserva moral da sociedade.
Parece que, no Brasil, essa fórmula institucional ainda apresenta uma enorme dificuldade para se estabelecer. E isso pode ser observado na postura de juízes e integrantes do Ministério Público, que, num cenário de desgaste dos políticos e seus partidos, começam a se apresentar como salvadores da pátria.
Aqueles que, iluminados por uma condição quase divina, começam a acreditar ter sido predestinados a salvar o País da corrupção, como se suas instituições também não fossem atingidas pelos mesmos desvios que ocorrem no Executivo e no Legislativo.
Salvadores da pátria, por mais bem-intencionados que sejam, acabam sempre assumindo uma postura voluntariosa contrária ao Estado de Direito. Simplificam os problemas políticos e oferecem como solução o uso inconstitucional da força, semelhantemente ao que Aldo Fornazieri chama de “lei em movimento”. Segundo ele, no tempo do nazismo, não existia segurança jurídica, pois as leis eram impostas conforme os anseios do movimento político.
Ou seja, no lugar de uma racionalidade jurídica inserida na tradição do constitucionalismo, que desde o início sempre esteve baseada na ideia de defesa das liberdades e limitação do poder, o que surgiu foi uma racionalidade jurídica instrumental feita ad hoc conforme os interesses do momento.
Nesse sentido, a ideia de lei em movimento transforma-se num mecanismo de destruição do Estado de Direito e acaba por colocar em seu lugar um Estado de Exceção permanente. É claro que a crise brasileira não é idêntica ao nazismo.
Mas, por outro lado, o exemplo do nazismo serve como paradigma para uma análise de como a substituição do Direito por argumentos ideológicos do tipo “precisamos fazer uma cruzada contra a corrupção” pode comprometer seriamente o Estado de Direito.
Recentes episódios a envolver altas autoridades demonstram que o Direito brasileiro está sendo, ou já foi, traído pela moral. O mais incrível dessa situação é que a traição ocorre pelas mãos de instituições que deveriam protegê-lo: o Ministério Público e o Judiciário. E o caso do ex-presidente Lula ilustra muito bem a preocupante situação.
Em 4 de março de 2016, todos assistiram a um espetáculo lamentável. Ficará marcado como “o dia em que um ex-presidente da República foi ilegal e inconstitucionalmente preso por algumas horas”, sendo o ato apelidado de “condução coercitiva”.
Em um país em que já não se cumpre a própria Constituição, o que é mais uma rasgadinha no Código de Processo Penal, pois não? Há dois dispositivos aplicáveis: os artigos 218 (no caso de testemunha) e 260 (no caso de acusado) do Código de Processo Penal. Eles dizem:
Art. 218. A testemunha regularmente intimada que não comparecer ao ato para o qual foi intimada, sem motivo justificado, poderá ser conduzida coercitivamente.
Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
Parágrafo único. O mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no artigo 352, no que lhes for aplicável.
Ora, até o mundo mineral sabe que, em termos de garantias, a interpretação é restritiva. Não vale fazer interpretação analógica ou extensiva ou qualquer outra forma de tergiversação sobre os dispositivos legais. A lei exige intimação prévia. Nos dois casos.
Mais: a condução coercitiva, feita fora da lei, é uma prisão por algumas horas. E prisão por um segundo é prisão. Pior: mesmo se cumprisse o Código de Processo Penal, ainda assim haveria de se ver se, parametricamente, os artigos 218 e 260 são constitucionais.
A resposta: no mínimo, o artigo 260 é inconstitucional (não recepcionado), pois implica produção de prova contra si mesmo. É írrito. Nenhum. Sei que o Supremo Tribunal Federal reconhece a condução coercitiva como possível. Mas não nos moldes do que está sendo discutido aqui.
Cabe(ria) a condução nos termos do que está no Código de Processo Penal. Recusa imotivada, ao não atender a uma intimação. Essa é a ratio. Acrescento: o STF não foi instado para falar da (in)constitucionalidade do artigo 260.
Mas, mesmo se o STF vier a dizer que o dispositivo foi recepcionado, ainda assim haveria de se superar a sua literalidade garantista e garantidora: a de que só cabe a condução nos casos em que o intimado não comparece imotivadamente.
Logo, o ex-presidente Lula e todos aqueles que até hoje foram “conduzidos coercitivamente” (dentro ou fora da “Lava Jato”) sem intimação prévia o foram à revelia do ordenamento jurídico. Que coisa impressionante é essa a ocorrer no País. Desde o Supremo Tribunal Federal até o juizado especial de pequenas causas se descumprem a lei e a Constituição.
Assim, de grão em grão, retrocedemos no Estado Democrático de Direito. Sempre em nome da moral pública, do clamor social etc. Sim, hodiernamente para prender basta dizer a palavra mágica: clamor social e garantia da ordem pública. Não são mais conceitos jurídicos, e sim enunciados performativos.
É como se o juiz, usando de sua livre apreciação da prova (eis a ironia da história – a quase totalidade dos processualistas penais nunca se importou com a livre apreciação, a ponto de estar intacto no projeto do Novo Código de Processo Penal), fosse autorizado a servir como reserva moral da sociedade.
A polícia diz que foi para resguardar a segurança do ex-presidente. Agora é assim, Estado de Exceção é sempre feito para resguardar a segurança.
O establishment juspunitivo (Ministério Público, Judiciário e Polícia Federal) suspendeu mais uma vez a lei. Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção. E o Estado de exceção pode ser definido, segundo Agamben, pela máxima latina necessitas legem non habet (necessidade não tem lei).
Quando, há mais de 20 anos, alertava para o fato de que o livre convencimento e a livre apreciação eram uma carta em branco para o arbítrio, muitos processualistas me recriminavam, dizendo: “Mas a livre apreciação é motivada”.
Eu brincava e respondia com uma anedota: “O machado estava entrando na floresta e uma árvore mais nova disse ‘não se preocupem que o cabo é dos nossos…’; ao que a árvore mais velha objetou ‘mas a lâmina, não!’” Dizia eu, então: isso é um argumento retórico. Se tenho livre apreciação, é apenas em um momento posterior que busco uma motivação. O processo é transformado em instrumento.
E mais: desde quando motivação é igual a fundamentação? Hoje posso dizer: eu avisei.
Consta que, na decisão que determinou a oitiva de Lula e outros, o juiz Sergio Moro ordenou que primeiro houvesse um convite para, só depois, em caso de recusa, fazer a coerção. Se verdadeiro, pode-se concluir que a polícia cometeu abuso de autoridade. De todo modo, a ressalva de “fazer o convite” não tem o condão de superar a flagrante ilegalidade/inconstitucionalidade da condução coercitiva.
*Pós-doutor e doutor em Direito Constitucional. Professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá. Integrante catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional.Ex-procurador de Justiça no Rio Grande do Sul”.
Carta Capital