Leia a íntegra do discurso de Lula na reunião técnico-científica da Amazônia

O presidente Lula, na reunião técnico-científica da Amazônia, em Letícia, na Colômbia Foto: Cláudio Kbene/PR

Quando recebi o convite do presidente Petro para participar desta reunião, achei excelente a ideia de começar em Letícia os trabalhos preparatórios do encontro de Belém.Esta é a primeira vez na história em que o Brasil e a Colômbia têm, ao mesmo tempo, governos progressistas que partilham do compromisso de levar a Amazônia para o centro de suas políticas.Temos muito em comum. Somos duas grandes democracias multiculturais, marcadas pela valiosa contribuição de indígenas e de afrodescendentes.

É natural que dois países que compartilham fronteira de mais de mil e seiscentos quilômetros e possuem as duas maiores populações da América do Sul se aproximem.

Estou vindo da tríplice fronteira na Bacia do Prata, onde participei da Cúpula do Mercosul, para outra tríplice fronteira, agora na Bacia Amazônica, para lançar a preparação de uma nova Cúpula.

Esses são dois grandes eixos da integração sul-americana. E eles estão fortemente interligados.

O que se faz num canto da América do Sul repercute em outro. Por isso nossa cooperação é tão importante.

O desmatamento na Amazônia afeta o regime de chuvas no Cone Sul, ameaçando o abastecimento de água para o consumo humano e para atividades econômicas.

Esta reunião técnico-científica discutiu temas fundamentais, como a proteção dos povos indígenas, a promoção da ciência, da tecnologia e da inovação, a bioeconomia e o combate a crimes transnacionais.

Falar da Amazônia é falar de superlativos. Ela abriga a maior floresta tropical do mundo, com 10% de todas as espécies de plantas e animais do planeta.

Tem 50 milhões de habitantes, com 400 povos indígenas que falam 300 idiomas diferentes.

Possui a maior reserva de água doce do planeta, incluindo um verdadeiro oceano subterrâneo.

Ocupa 40% do território da América do Sul e, se fosse um país, seria o sétimo maior do mundo, atrás da Austrália e antes da Índia.

Em seus seis milhões e trezentos mil quilômetros quadrados, caberiam todos os 27 países da União Europeia, mais Reino Unido, Noruega, Turquia, Japão, Coréia do Sul e Nova Zelândia.

Os países amazônicos têm dois desafios a enfrentar juntos.

Um deles é institucional, e diz respeito ao fortalecimento da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica.

O outro é político, e se refere à construção de uma nova visão de desenvolvimento sustentável para a região.

Na semana passada, celebramos os 45 anos da assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica.

O Tratado foi uma iniciativa pioneira, mas concebida sob uma perspectiva que já não faz mais sentido. Seu foco era nos blindar de pressões de atores alheios à região.

Impulsionado pelo debate sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável dos anos 90, o que era apenas um Tratado evoluiu e criamos a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), em 1998.

Assim surgiu a única organização socioambiental do mundo, que é também a única com sede no Brasil.

Hoje, a OTCA é uma ferramenta que, em vez de nos isolar, tem a capacidade de nos projetar para o centro do mais importante desafio da atualidade: a mudança do clima.

Reúne oito países – Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela –  e abrange uma vasta gama de assuntos, passando por povos indígenas, saúde, turismo, infraestrutura e transporte, e sua correlação com o meio ambiente.

Ao longo de todos esses anos, não temos dado à OTCA a atenção que ela merece. A Cúpula de Belém será um momento de correção de rota.

A abertura às autoridades locais e à sociedade será um componente essencial dessa nova OTCA. É preciso valorizar o papel dos prefeitos, governadores e parlamentares. Não se faz política pública sem participação de quem conhece o território.

Para isso, queremos formalizar o Foro de Cidades Amazônicas e o Parlamento Amazônico.

Com a realização dos Diálogos Amazônicos nos dias que antecederão a Cúpula de Belém, reuniremos a sociedade civil e a academia em sessões que resultarão em recomendações de ações concretas.

Para traduzir esse impulso político em termos práticos, pretendemos institucionalizar o Observatório Regional da Amazônia, que vai sistematizar e monitorar dados de todos os países para orientar políticas públicas e torná-las mais eficazes.

A Sala de Situação do Observatório produz, em tempo real, boletins e alertas sobre secas, cheias, chuvas, incêndios e contaminação das águas, que ajudam a salvar vidas.

Queremos estabelecer um comitê de especialistas da Amazônia, inspirado no Painel Intergovernamental Sobre Mudança do Clima (IPCC), para gerar conhecimento e produzir recomendações baseadas na ciência.

A formação de redes de contato entre universidades e instituições de pesquisa contribuirá para estimular a produção de conhecimento local, dinamizar as economias e criar oportunidades para nossa juventude, tão carente de alternativas de estudo e trabalho.

Podemos fazer muito se dermos à OTCA diretrizes claras e recursos adequados.

Por meio de uma coalizão de bancos de desenvolvimento e da mobilização de recursos públicos e privados, vamos fomentar atividades produtivas locais sustentáveis, como a agricultura familiar, a pesca artesanal, projetos agroflorestais e redes de empreendedorismo, sobretudo feminino.

Cuidar da Amazônia é, ao mesmo tempo, um privilégio e uma responsabilidade.

Há alguns dias, participei de um festival que reuniu milhares de pessoas aos pés da Torre Eiffel, em Paris.

Muitos dos que estavam lá, sobretudo os jovens, se preocupam com o futuro da Amazônia. Essa preocupação é legítima, pois o bioma interessa a toda a humanidade.

Porém, cabe a nós decidir como dar uma vida digna para nossa gente e como preservar nossa floresta e nossa biodiversidade.

A Cúpula de Belém será uma plataforma para que os oitos países amazônicos assumam o protagonismo na busca por soluções compartilhadas.

No Brasil, aprendemos a importância de articular diferentes setores em torno de um objetivo comum. Graças ao Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, reduzimos o desmatamento em 83% entre 2004 e 2012.

E conseguimos isso ao mesmo tempo que aumentamos a produtividade agrícola na região.

Relançamos o Plano em janeiro deste ano e já podemos ver seus resultados. Os alertas de desmatamento na Amazônia tiveram uma redução de 33,6% neste primeiro semestre.

Meu governo vai zerar o desmatamento ilegal até 2030. Esse é um compromisso que os países amazônicos podem assumir juntos na Cúpula de Belém.

Há muitas outras áreas em que podemos cooperar.

É imprescindível combater a fome na região amazônica. Em todos os nossos países, esses territórios têm maiores índices de insegurança alimentar.

Na saúde, podemos desenvolver ações conjuntas, como medidas para assegurar o acesso a vacinas, medicamentos e atendimento médico.

Também precisamos proteger a propriedade intelectual e prevenir a biopirataria na Amazônia, desenvolvendo e aproximando nossos sistemas nacionais de uso do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais.

Se para a criminalidade as fronteiras não são obstáculos, nossas polícias e sistemas de justiça têm de trabalhar na prevenção, na investigação e no enfrentamento desses crimes.

Com esse enfoque, em breve, estabeleceremos o Centro de Cooperação Policial Internacional da Amazônia em Manaus.

A criação de um Sistema de Controle de Tráfego Aéreo integrado também será importante para desbaratar as rotas utilizadas pelo crime organizado.

Todos sofremos com a presença de criminosos envolvidos na extração de madeira, no garimpo, na caça e na pesca ilegais e na grilagem de terras públicas.

Na ausência do Estado, o narcotráfico se espalha e se torna vetor de crimes ambientais. Os povos indígenas, como os Ianomâmi, são vítimas da exploração ilegal de suas terras.

Nossos jovens, no campo, na floresta e nas cidades, são presas fáceis para facções criminosas, que crescem nas prisões e fora delas.

Um olhar especial também precisa ser dedicado às meninas e mulheres amazônicas. A violência de gênero e a exploração sexual não podem ser toleradas. E as lideranças femininas têm de ser escutadas.

Quem protege a Amazônia merece ser protegido. Se a floresta está de pé hoje é, em grande medida, graças aos povos indígenas, às comunidades tradicionais e aos defensores e defensoras da causa ambiental.

Nomes como Chico Mendes, Irmã Dorothy Stang, Bruno Pereira e Dom Phillips são emblemáticos desse histórico de violência que aflige a Amazônia brasileira.

Esses são apenas alguns dos nossos desafios e áreas em que podemos trabalhar juntos.

A eles se soma a coordenação nos foros multilaterais.

Temos que unir esforços em discussões internacionais que nos dizem respeito diretamente. Nossa voz tem que se fazer ouvir, com força, nas conferências sobre o clima, a biodiversidade e a desertificação e nos debates sobre desenvolvimento sustentável.

Podemos identificar posições comuns já para a COP28 do clima, este ano, em diálogo com outros países que também possuem florestas tropicais, como a Indonésia e a República Democrática do Congo (Kinshasa).

Com a República do Congo (Brazzaville), podemos trabalhar para aproximar as maiores bacias tropicais do mundo.

O princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas continua central.

Vamos ter de exigir, juntos, que os países ricos cumpram seus compromissos, incluindo a promessa feita em Copenhague, em 2009, de 100 bilhões de dólares por ano para a ação climática.

Afinal, foram eles que emitiram historicamente a maior parte dos gases do efeito estufa.

Quem tem as maiores reservas florestais e a maior biodiversidade merece maior representatividade.

É inexplicável que mecanismos internacionais de financiamento, como o Fundo Global para o Meio Ambiente, que nasceu no Banco Mundial, reproduzam a lógica excludente das instituições de Bretton Woods.

Brasil, Colômbia e Equador são obrigados a dividir uma cadeira do conselho do Fundo, enquanto países desenvolvidos, como Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha, Itália e Suécia, ocupam cada um seu próprio assento.

Em outros foros, nossa visão também precisa ser levada em conta. Cabe a nós trabalhar, na FAO, pela definição de um conceito internacional de bioeconomia que nos permita certificar os produtos da nossa sóciobiodiversidade e gerar emprego e renda para nossa população.

A COP30 do clima em 2025, também em Belém, será uma oportunidade valiosa para que o mundo conheça a verdadeira Amazônia. Muita gente não imagina, por exemplo, que a maior parte da população amazônica é urbana.

Das 26 milhões de pessoas que vivem na Amazônia brasileira, 12 milhões estão em cidades com mais de 100 mil habitantes.

Essas pessoas necessitam de infraestrutura adequada, educação e alternativas de vida sustentável, que podem vir de fontes como o turismo ou de investimentos em ciência, tecnologia e inovação.

A floresta tropical não pode ser vista apenas como um santuário ecológico. O mundo precisa se preocupar com o direito a viver bem dos habitantes da Amazônia. Afinal, o desenvolvimento sustentável possui três dimensões inseparáveis: a econômica, a social e a ambiental.

Uma transição ecológica justa requer recursos adequados e transferência de tecnologia. Não pode se basear na exploração predatória de recursos naturais, como minerais críticos, nem justificar novos protecionismos. Em suma, não pode servir de fachada para um neocolonialismo.

A descarbonização não deve aprofundar as desigualdades entre os países, reeditando a relação de dependência entre centro e periferia.

Meu sonho é que a Amazônia se torne um exemplo de desenvolvimento sustentável, mostrando para o mundo como é possível conciliar prosperidade econômica com proteção ambiental e bem-estar social.

Quero uma Amazônia inclusiva, com pleno respeito às aspirações das mulheres, dos jovens, dos povos indígenas e das comunidades tradicionais e de toda a população do campo, da floresta e das águas.

É isso que vamos começar a construir juntos na Cúpula dos Países Amazônicos. Agradeço mais uma vez a Colômbia por nos apoiar nesse caminho e espero todos vocês em Belém.

Muito obrigado.

 

 

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