Leia a íntegra da fala de Mauro Vieira sobre a situação na Faixa de Gaza

Mauro Vieira: "Na visão do Brasil, os principais objetivos estão claros: a libertação imediata e incondicional de todos os reféns e o fim da violência, (...) para que a ajuda humanitária possa ser entregue à sofrida população de Gaza" Foto: Lula Marques/Agência Brasil-Arquivo

Leia a seguir a intervenção feita pelo ministro das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira, em reunião emergencial do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a situação na Faixa de Gaza, realizada em Nova York, na última segunda-feira (30).

Ilustres representantes,

Agradeço os relatores pela vasta informação sobre a situação humanitária no terreno e exalto o trabalho de suas equipes, tanto em campo quanto em outros lugares. Eles honram, mais uma vez, o trabalho desta Organização e tudo o que ela representa.

Seguindo as instruções do Presidente Lula, venho diante dos Senhores novamente hoje com um profundo senso de urgência e consternação.

Devemos sempre ter em mente os rostos humanos de ambos os lados do conflito.

Expresso, portanto, as mais profundas condolências do Brasil às famílias e amigos de todos os civis, incluindo a equipe corajosa e dedicada das Nações Unidas, que perderam suas vidas nas crises em curso decorrentes do conflito prolongado em Israel e Palestina, tragicamente reacendido pelos atos terroristas do Hamas contra Israel em 7 de outubro. Nada justifica tais crimes. Todos os reféns devem ser imediata e incondicionalmente libertados, e o acesso a eles pela Cruz Vermelha deve ser imediatamente concedido.

Ao mesmo tempo, a situação atual em Gaza é assombrosa e indefensável, em qualquer padrão humano e segundo o direito humanitário internacional. Uma catástrofe humanitária alarmante desenrola-se diante de nossos olhos, com milhares de civis, incluindo um número avassalador e intolerável de crianças, sendo punidos por crimes que não cometeram. Em 3 semanas, testemunhamos esse conflito ceifar a vida de mais de 8 mil civis, dos quais mais de 3 mil são crianças. Desde a última vez que falei neste Conselho, na semana passada, o número de mortes de crianças aumentou em mil.

Enquanto isso, o Conselho de Segurança realiza reuniões e ouve discursos, sem ser capaz de tomar uma decisão fundamental: pôr fim ao sofrimento humano no terreno. Enquanto milhares em Israel e Palestina choram por seus entes queridos, enquanto os israelenses agonizam com o destino dos reféns, enquanto os gazenses sofrem sob operações militares implacáveis que estão matando civis, incluindo um número intolerável de crianças, nós temos os meios para fazer algo e, ainda assim, repetida e vergonhosamente falhamos.

Desde 7 de outubro, encontramo-nos várias vezes e levamos à consideração quatro projetos de resolução. No entanto, permanecemos em um impasse, devido a discordâncias internas, especialmente entre alguns membros permanentes, e devido ao uso persistente deste Conselho para atingir objetivos autocentrados, em vez de colocar a proteção de civis acima de tudo. A crise humana grave e sem precedentes diante de nós exige o abandono de rivalidades estéreis. O fato de o Conselho não ser capaz de cumprir sua responsabilidade de salvaguardar a paz e segurança internacionais em razão de antigas hostilidades é moralmente inaceitável.

Não nos enganemos. Os olhos do mundo estão voltados para nós e não se desviarão de nossa incapacidade perturbadora de agir. Todos veem que nossa incapacidade de nos unir em resposta às crises humanas que enfrentamos hoje leva a questionar a própria razão de ser deste Conselho. Alguém até escreveu que, não apenas os civis, mas também este órgão está sob os escombros de Gaza. A diferença é que somos nossos próprios salvadores. Só precisamos fazer o que é certo: poupar vidas inocentes do flagelo das guerras.

Pode ainda ser que haja tempo para resgatar este Conselho e manter a esperança que muitos de nós ainda temos em nossa capacidade de honrar nosso mandato sob a Carta das Nações Unidas. Mas isso só será possível se houver vontade política suficiente para alcançarmos compromissos e para sermos minimamente equilibrados e inclusivos em nosso diagnóstico e no caminho a seguir. O fracasso em fazê-lo – mais um fracasso – acarretará um custo cada vez mais alto, acima de tudo em vidas humanas, mas também para o multilateralismo em geral, e para as Nações Unidas e este Conselho, em particular.

Na semana passada, uma esperança pelo consenso parecia surgir, ecoando o apelo do Secretário-Geral por um cessar-fogo humanitário, à medida que a 10ª Sessão Especial de Emergência da Assembleia Geral aprovou uma resolução pedindo um cessar-fogo humanitário que levaria a um cessar das hostilidades. Uma luz no fim do túnel parecia vislumbrar-se também quando o Secretário-Geral, que esteve pessoalmente na região para avaliar a situação no terreno, anunciou a abertura da fronteira de Rafah para algumas entregas iniciais de ajuda, e alguns reféns foram libertados. As Nações Unidas, por meio de seu Secretariado, sob a liderança do Secretário Geral Antonio Guterres, da UNRWA e de outros órgãos e agências, têm trabalhado incansavelmente para enfrentar as crises humanas que enfrentamos. Cabe ao Conselho de Segurança seguir adiante.

O preço da inação é inaceitavelmente alto. A urgência crescente para as famílias dos reféns e a dor insuportável para a população civil de Gaza não podem ser subestimadas. Os primeiros passos positivos dados pelos órgãos e agências da ONU não vão longe o suficiente, à medida que a escalada do conflito torna a situação mais grave a cada hora. A relevância de uma resolução do Conselho de Segurança está na necessidade de ajuda humanitária sustentada e na garantia de condições de trabalho seguras para aqueles envolvidos no resgate de reféns e na prestação de assistência humanitária. O cessar das hostilidades, portanto, beneficia a população civil de ambos os lados. Com o risco de reafirmar o óbvio, quero colocar de forma direta: não pode haver resgate de reféns e ajuda humanitária sob bombardeios.

Por isso, o Brasil e os demais membros do E-10 têm trabalhado incansavelmente para tentar fazer com que este Conselho aja de forma mais decidida, desde a última divergência em torno de propostas de resolução.

Na visão do Brasil, os principais objetivos estão claros: a libertação imediata e incondicional de todos os reféns e o fim da violência, de quaisquer formas que possam ser acordadas sem mais demora, para que a ajuda humanitária rápida, segura, suficiente e desimpedida possa ser entregue à sofrida população de Gaza. Além das 8 mil vidas perdidas, muitas mais estão prestes a encontrar seu destino fatal, uma vez que os hospitais não têm meios para fornecer tratamento básico aos pacientes. Portanto, prover recursos essenciais para aqueles que estão em Gaza, incluindo água, comida, suprimentos médicos, combustível e eletricidade, é urgente e imperativo.

Cirurgias estão sendo realizadas sem anestesia, e vidas estão sendo ceifadas nos hospitais, por falta de energia e dos mais básicos insumos médicos. Alimentos e água estão escassos, e os preços dispararam. E o fluxo de ajuda humanitária, até o momento, basta para muito pouco mais do que uma oportunidade de fotografia.

Tanques e tropas estão no terreno em Gaza, e o tempo para agir está se esgotando. Minhas perguntas a todos aqui são: se não agora, quando? Quantas vidas mais serão perdidas até que finalmente passemos da retórica à ação?

Também é crítico e urgente permitir a evacuação segura e imediata de estrangeiros de Gaza e de outras áreas da região, caso se sintam ameaçados.

Embora todo Estado tenha o direito e o dever de proteger seus cidadãos, as ações devem ser consistentes com o direito internacional e o direito internacional humanitário, em particular com os princípios de distinção, proporcionalidade, precaução, necessidade militar e humanidade. O direito e o dever de proteger a população de um Estado não podem e não devem vir à custa de vidas de civis nem de destruição da infraestrutura civil. Como o Secretário-Geral António Guterres nos lembrou repetidamente: mesmo as guerras têm regras.

Quaisquer ataques indiscriminados contra civis e infraestrutura crítica, bem como a privação de civis de bens e serviços básicos, são moralmente injustificáveis e ilegais sob o direito internacional humanitário. O Brasil condena, veementemente, ações que confundam a linha entre civis e combatentes.

Hoje, a UNRWA lançou luz sobre a realidade sombria e desoladora em Gaza, ao destacar o nível condenável de destruição da infraestrutura civil e a trágica perda de vidas inocentes, incluindo mulheres, crianças e pelo menos 35 de seus funcionários. A Organização Mundial da Saúde tem constantemente recordado a necessidade urgente do cessar da violência e da ação humanitária, num momento em que a infraestrutura de saúde em Gaza está à beira do colapso.

Além das considerações humanitárias imediatas e urgentíssimas, paira a ameaça à estabilidade regional, e quaisquer repercussões poderiam ser catastróficas. O Brasil insta a uma guinada unida em direção à desescalada e apela a todas as partes para agirem com o máximo de contenção. É urgentemente necessário um cessar das hostilidades para criar as condições para um cessar-fogo total, duradouro e respeitado e para a retomada de um processo de paz credível.

Tudo isso está em jogo, enquanto continuamos nossos esforços para fazer com que este Conselho aja com uma única voz.

Ilustres Membros do Conselho,

O direito internacional humanitário oferece um caminho claro para evitar ou, ao menos, aliviar significativamente o sofrimento de civis. O quadro para ação coletiva é claro.

Nossa resposta coletiva a essa crise, que todos tememos que só piorará, se nada for feito, será um momento definidor para as Nações Unidas. O fato espantoso é que o Conselho de Segurança não tem um histórico razoável, quando se trata da manutenção da paz e da segurança internacionais no Oriente Médio: questões relacionadas à região, em geral, receberam 35% dos 250 vetos dos Membros Permanentes. Desde 2016, o Conselho não conseguiu aprovar uma única resolução sobre a situação na Palestina. A situação no Oriente Médio é, portanto, de longe uma das questões mais bloqueadas no Conselho de Segurança. Esse fato expressa a ineficácia do sistema de governança e a falta de representação de certas partes do mundo neste órgão.

Uma decisão sobre os aspectos humanitários das crises atuais certamente não remediará o fracasso histórico do Conselho de Segurança em relação à situação no Oriente Médio. No entanto, ela impedirá mais sofrimento humano agora. Obrigado.

Do site do Itamaraty

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