Lei de Responsabilidade Sanitária vai definir compromissos de entes federados com a Saúde da população

rogeriocarvalho

 

O deputado Rogério Carvalho (PT-SE) recebeu em seu primeiro mandato na Câmara a incumbência de relatar na Comissão de Finanças e Tributação (CFT) uma matéria fundamental para consolidar o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil: a Lei de Responsabilidade Sanitária. Em entrevista ao jornal PT na Câmara, o parlamentar explica a relevância da proposta para consolidar, entre outros pontos, o princípio da integralidade do atendimento de saúde previsto na Constituição de 1988. Antes de explicar do que trata o projeto, que tem como autor o deputado Dr. Rosinha (PT-PR), Carvalho faz um retrospecto de toda a construção histórica que culminou com a conquista de incluir a saúde no texto constitucional como um direito do cidadão e um dever do Estado. Ex-secretário de Saúde de Aracaju e de Sergipe, médico especialista em saúde comunitária, com mestrado e doutorado na área, Rogério Carvalho pontua também na entrevista a seguir a importância do Decreto 7.508, assinado pela presidenta Dilma Rousseff em 2011, que também significa um marco na consolidação do SUS.

Por: Tarciano Ricarto

PT na Câmara – O SUS completa em outubro próximo, juntamente com a Constituição, 25 anos. O que pouca gente sabe é que ele nasceu de uma construção democrática e de uma resistência contra a própria Ditadura Militar. Qual a relevância do ponto de vista histórico de ter conseguido naquela época incluir na Constituição que a saúde era um dever do Estado e um direito do cidadão?

Rogério Carvalho – Na verdade, a luta pela universalização da saúde e pela garantia dela como direito é anterior ao golpe militar. Se você pegar os registros da I e da II Conferência Nacional de Saúde, você já vai encontrar deliberações muito semelhantes às da VIII Conferência [1986], que foi o grande momento da militância do movimento sanitário brasileiro, que apresentou grandes diretrizes de conformação de sistema público, gratuito, universal, integral e descentralizado. A VIII Conferência Nacional de Saúde apontou tudo isso como um reflexo da luta do movimento social e do movimento sanitário na tentativa de construir a saúde como um direito e de estruturar um sistema para dar sustentação a tudo isso. Da VIII Conferência, nasceu o SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde – em que o INAMPS, que prestava assistência médica somente aos usuários da Previdência Social, passou a ser universal, ainda sem o princípio da integralidade, mas já com a ideia da universalidade, do atendimento a todos. A partir de 88, transformou-se em Sistema Único de Saúde, agora já como uma conquista da luta social brasileira, que é a saúde como direito de cidadania e o SUS como sistema para dar conta do atendimento a toda população.

PT na Câmara – E em que pilares esse sistema se sustenta segundo os preceitos constitucionais?

Rogério Carvalho – O SUS nasce assentado em três grandes princípios: o da universalização, o da integralidade e o da descentralização. A universalização é fácil de entender, ou seja, é para todos os cidadãos. Às vezes, as pessoas perguntam por que os ricos pegam medicamentos gratuitos na farmácia popular, por que fazem hemodiálise, por que fazem quimioterapia e radioterapia na rede pública… Porque o sistema é universal, é um direito de cada e de todos os brasileiros. Faz parte do conceito de seguridade, não de seguro. É um direito de cidadania, é mais do que pagar por ele. É um direito fundamental da pessoa humana. A integralidade é um princípio que somente o sistema único brasileiro e o sistema espanhol trazem de forma explícita. O que é ele? Ele é um compromisso constitucional de dar a cada indivíduo o que ele precisa para ter sua necessidade de saúde atendida em cada momento da sua vida. Esse princípio é o que define a complexidade e a natureza do SUS, pois esse princípio vai definir o que o sistema tem que prover aos brasileiros. Ele qualifica, define o que vai ser colocado para o “consumo” com o objetivo de reabilitar, promover, proteger, prevenir e curar. Por fim, o princípio da descentralização, que torna o nosso sistema extremamente complexo, porque define que a responsabilidade primeira com a saúde é do município, complementada pelos estados e depois pela União.

PT na Câmara – Na prática, o que o princípio da descentralização, que define todos esses operadores sistêmicos, significa para o gerenciamento do sistema de saúde?

Rogério Carvalho – Isso significa que os três entes têm competência concorrentes e complementares. Ou seja, todos têm responsabilidade de fazer, mas tem uma responsabilidade que é complementar. Por exemplo, o estado tem uma responsabilidade complementar em relação aos municípios; a União em relação aos estados e aos municípios. É uma coisa muito complexa.

PT na Câmara – Considerando essa complexidade, como se deu, nos anos seguintes à Constituição de 88, o início do processo de municipalização do SUS?  

Rogério Carvalho – Na década de 90 foram sancionadas as duas Leis Orgânicas da Saúde [Lei 8080 e da Lei 8142], com alguns vetos. O INAMPS, que foi o primeiro sistema de universalização da saúde no Brasil, veio para dentro do SUS em 91. A rede contratada pelo INAMPS foi a base para a conformação da rede do SUS. Então, quando ele passa para o ministério vem o debate sobre municipalização.  Em 92, acontece a IX Conferência Nacional de Saúde, da qual eu participei como delegado, que teve como tema “Municipalização é o Caminho”. Nessa conferência, consolidou-se a tese de que os municípios deveriam receber o dinheiro. Na verdade, era a disputa pelo espólio do INAMPS. Ou seja, com quem ficariam os recursos. Os municípios pegaram um pedaço; os estados, outro; e a União, outro. Houve o que todos chamaram de “inampização” da saúde. Vários “INAMPS” se reproduziram nos municípios, nos estados e também na União. Por outro lado, teve o efeito de obrigar estados e municípios a se tornarem operadores e produtores de ações e de serviços de saúde e operadores sistêmicos. Começa aí a consolidação e a conformação do sistema deveras complexo.

PT na Câmara – Dentro dessa conformação, como fazer com que cerca de 5.570 municípios, que são também operadores sistêmicos, forme um sistema único?

Rogério Carvalho – Esse é o debate mais difícil. Qual é o regramento para fazer com que quase seis mil operadores consolidem esse sistema? Toda a lógica que foi colocada na Constituição e nas Leis Orgânicas da Saúde fala em Plano Municipal de Saúde, que era um plano que não estava submetido à diretriz nenhuma. Se eu tenho um plano sem nenhum regramento, quer dizer que a saúde de um cidadão que reside em Laranjeiras, em Sergipe, é diferente da saúde de quem mora em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul? O cidadão é o mesmo, ele é um brasileiro, é ele que é o portador de um direito, do direito à saúde.

PT na Câmara – Como se resolve então a questão da integralidade dentro do sistema, garantindo que o atendimento do cidadão de Laranjeiras seja o mesmo do de Cruz Alta?

Rogério Carvalho – A questão central é esta: como se resolve a integralidade. Nessa tentativa de uniformização, foram editadas a NOAS 1 e 2 (Norma Operacional de Assistência à Saúde), entre 2000 e 2002, que foram uma tentativa de criar sistemas regionais, uma tentativa de resolver, por exemplo, o problema da migração. Ou seja, do paciente que ia de um lado para outro [de um município para outro ou de um estado para outro] e que o dinheiro não ia [dessa localidade para a outra]. Esse debate gerou a NOAS, que foi um debate importante sobre a necessidade de se criar sistemas regionais. Depois veio o Pacto pela Saúde, já no governo Lula – dividido em três [Pacto pela Vida, Pacto em Defesa do SUS e Pacto de Gestão do SUS]. Foi uma tentativa de criar o primeiro esboço de responsabilidade sanitária. O pacto é um pacto de indicadores, que é o Pacto pela Saúde. Ou seja, quais são as suas metas? O que você assume de compromisso? Depois, quais são os seus compromissos com o SUS? Com o financiamento, com as regras gerais do sistema? Mas nem a NOAS nem o Pacto foram instrumentos de grande capacidade operacional. Ou seja, nesse tempo todo, ao longo de 1990 até 2011, praticamente fomos acumulando um modelo e uma concepção sistêmica “susista”, visto que, até então, prevaleceu a concepção do sistema “inampiano”.

PT na Câmara – Em que o Decreto 7.508/11, assinado pela presidenta Dilma, contribui para concretizar o SUS?

Rogério Carvalho – A presidenta editou esse decreto regulamentando a Lei 8080/90 [Lei Orgânica da Saúde]. Na verdade, a experiência de Sergipe, do PT, foi quem forjou esse esboço de Contrato Organizativo de Ação Pública (COAP), na gestão em que eu era secretário de Saúde, e o Déda [Marcelo Déda] era governador. O Padilha [Alexandre Padilha, ministro da Saúde] compreendeu e fez o decreto a partir da regulamentação da Lei 8080. É a primeira tentativa real de subsunção de todo o processo histórico num instrumento que cria o sistema único. Eu acredito que para a gente finalizar essa etapa de conformação sistêmica é importante definir as responsabilidades sanitárias de cada ente federativo.

PT na Câmara – O decreto, entre outros pontos, define um padrão de integralidade, ou seja, a que tipo de serviços o cidadão terá acesso dentro do sistema. O senhor pode detalhar melhor isso?

Rogério Carvalho – Primeiro, o decreto traz algumas definições sistêmicas. O governo federal estabelece alguns parâmetros. Por exemplo, a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde – a Renasses. É uma definição sistêmica. Ou seja, o sistema único tem que oferecer aquilo. Com o somatório das capacidades de produção, de gerenciamento, de gestão, de administração e de financiamento, cada operador sistêmico tem que oferecer aquilo regionalmente. Cria o conceito de região e que aquela relação de serviços de saúde deve ser ofertada aqui, a partir do somatório de todas as capacidades [produção, gerenciamento…] desses operadores sistêmicos que estão em cada espaço geográfico definido como região de saúde. Isso se amarra através de um Contrato Organizativo de Ação Pública. Não é suficiente só isso. Mas já é um grande passo. Ele ainda precisa trabalhar com o conceito de responsabilidade sanitária como elemento que se soma para conformar o sistema.

PT na Câmara – De que forma essa responsabilidade sanitária contribuirá para concretizar a regionalização e, consequentemente, prover o atendimento integral?

Rogério Carvalho – A responsabilidade sanitária passa a ser a explicitação do compromisso de cada ente com os demais entes na tentativa de conformar um sistema regional. Cada ente terá que nominar a sua responsabilidade sanitária: os compromissos com os indicadores de morbidade e de mortalidade da minha população; o compromisso de entrega dessas ações e serviços de saúde para a minha população e para a população referência; e o meu compromisso com as instâncias de governança de um sistema que extrapola o meu limite geográfico. Isso é a responsabilidade sanitária. Em última instância, isso significa uma entrega definida que eu vou dar à população usuária do meu pedaço sistêmico. Um sistema como o nosso precisa ter a sua partícula-mãe – o seu “Bóson de Higgs”. Essa partícula-mãe nunca foi materializada, identificada… E ela é a responsabilidade sanitária. Se eu defino que a responsabilidade sanitária é a partícula-mãe, cada ente vai dizer qual é a sua. Pegando a Constituição que diz que o dever de prestar atendimento de saúde é primeiramente dos municípios, então, cada um deles vai dizer qual é a sua responsabilidade sanitária. Depois vem o estado, como um grande continente, e percebe quais são os grandes buracos, colocando a parte dele, como uma matriz que se encaixa onde existem falhas, tanto de produção, como normativa, gerencial… Depois vem a União e identifica onde está faltando financiamento, onde a oferta está insuficiente, onde há falta de insumos estratégicos… Ou seja, todos os entes terão a sua partícula-mãe, que é a sua responsabilidade sanitária. Toda responsabilidade sanitária é complementar. Então, quando eu faço um Contrato Organizativo de Ação Pública, estou definindo quais são as estruturas que inter-relacionam essas partículas-mãe na conformação do sistema. Então, o contrato tem que trazer todos os elementos que amalgamam e que conformam a estrutura sistêmica para garantir o cidadão o direito à saúde, assentado na integralidade, na universalidade e na descentralização.

PT na Câmara – Falando agora de financiamento… De que forma esse gargalo pode ser resolvido na área da saúde?

Rogério Carvalho – Acho que o caminho seria o governo definir num horizonte de tempo a sua meta de gasto per capito com saúde no Brasil. Também definir um mecanismo de correção a partir do momento em que a gente atingir esse gasto per capito. A gente teria que estabelecer hoje, fazer as correções anuais (índice da inflação mais o PIB), para que gente defina o valor real do que vai ser a meta ideal. Por exemplo, a gente gasta hoje, hipoteticamente, R$ 100 por habitante/ano. Se a nossa meta é chegar a R$ 200, vamos chegar a esse valor em quantos anos? Quanto a gente vai precisar agregar a cada ano no gasto com a saúde do povo brasileiro? Por que não dá pra colocar logo R$ 100 de cara? Porque não há capacidade instalada para colocar mais verba no custeio. Se botar, vai gastar mal e não vai resolver o problema de saúde da população. É preciso ter um plano de aumento de recurso associado a um plano de investimento, que vai demandar mais recursos de custeio, organizando e distribuindo esse dinheiro para garantir em todas as regiões do País capacidade operacional, de produção e de atendimento das principais demandas de saúde da população, ficando para algumas cidades maiores a complementariedade do que falta nessas regiões. A ideia é que a gente saia de uma conta em que a gente gasta hoje, por exemplo, R$ 100 e passe para R$ 200 entre cinco e dez anos. Será preciso ter um gasto enorme de investimento nos primeiros cinco anos, com algum custeio. E um gasto intensivo em custeio a partir de cinco anos, para dobrar essa relação de gasto por habitante/ano que existe hoje.

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