José Graziano – Um brasileiro à frente da FAO e seus desafios

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Diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) há dois anos, completados em 1º de janeiro, o agrônomo brasileiro José Graziano tem um problemão para controlar: um orçamento pequeno, US$ 1 bilhão ao ano, para enfrentar um flagelo que aflige 840 milhões de seres humanos. E outro problema que está fora de seu controle: o vaivém nos preços de alimentos. “O mercado financeiro está entre os responsáveis pela subida dos preços dos alimentos. Não exatamente pela subida, mas pela volatilidade dos preços”, afirma, em declaração que merece atenção. A FAO teve dificuldade em comprovar, e mais ainda em debater publicamente, a relação entre os agentes do mercado financeiro e a oscilação que tanto prejudica o combate à fome e a pobreza.

Entre 2002 e 2008, o índice mundial de preços de alimentos calculado pela agência da ONU subiu sem parar. Aumentou mais que o dobro do registrado seis anos antes. E continua oscilando, sempre em níveis elevados. Mas se antes a FAO relutava em falar abertamente sobre a influência da venda de commodities em bolsas de valores no custo da comida que vai diariamente para a mesa de bilhões de pessoas, Graziano agora abre o jogo a respeito: o uso de grãos, em especial o milho, para produção de combustíveis na Europa e nos Estados Unidos foi o grande fator utilizado pelos agentes especulativos para provocar uma alta que dura até hoje. Para solucionar o caso, adverte, será necessário que Estados e sociedade controlem seus bancos e seus mercados.

Graziano põe a erradicação da fome como uma das cinco metas centrais de seu mandato, de janeiro de 2012 a julho de 2015. E é autoridade no assunto. Foi um dos idealizadores do programa Fome Zero e assumiu no início do governo Lula o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, que no ano seguinte seria transformado no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. O programa foi pontapé inicial de uma série de ações que, entre 2003 e 2013, retiraram 36 milhões de brasileiros da situação de extrema pobreza. “O maior ingrediente que falta no menu do combate à fome é a vontade política. Isso eu acho que o Brasil mostrou muito claramente.”

Durante entrevista concedida em 10 de dezembro, Graziano abordou ainda o Ano Internacional da Agricultura Familiar, celebrado em 2014, e sua rotina à frente da FAO. Participaram da entrevista jornalistas da Revista do Brasil, Rádio e Rede Brasil Atual, TVT e jornal ABCD Maior.

O senhor assumiu a direção-geral da FAO em 2012. Quais foram as prioridades estabelecidas e no que foi possível avançar até agora?

Temos mais ou menos US$ 1 bilhão ao ano de recursos regulares que os países contribuem e mais US$ 1,5 bilhão de recursos voluntários que basicamente são dedicados para emergências. Esse total de US$ 2,5 bilhões distribuímos entre os 197 países afiliados. Os mais pobres recebem mais atenção. Principalmente os da região do Sahel, do chifre da África. Quando eu cheguei a FAO tinha listado 10 mil atividades no biênio. Trabalhávamos quase como uma ONG, fazendo coisinhas aqui e coisinhas ali. Consegui aprovar na nossa última conferência, em julho, um plano de trabalho focado em cinco prioridades: a primeira é a erradicação da fome. É uma novidade, porque os países chegaram à conclusão que a fome não tem conversa, não tem meio termo, temos que erradicá-la. Nós podemos erradicar. O mundo hoje produz mais do que o suficiente para alimentar todo mundo e ainda joga fora um terço do que produz. Então não tem por que ter gente com fome.

Segundo, ter uma produção mais sustentável. Aumentamos muito a produção e a produtividade agrícola. Basicamente desde os anos 1960, com a Revolução Verde, a FAO aumentou 40% da produtividade per capita de grãos. No entanto, o impacto sobre o meio ambiente é muito alto. Estamos hoje revendo esse modelo para um modelo socialmente mais justo, mas também ambientalmente mais protecionista. A terceira prioridade é reduzir a pobreza rural. O mundo concentra a pobreza hoje nos rincões rurais e é na zona rural que também estão os produtores de alimentos. No entanto, nós temos 70% da nossa gente que produz passando fome. Na África, 90% da população pobre está no meio rural.

A quarta é ter sistemas alimentares mais inclusivos. Hoje as cadeias alimentares são muito concentradas em grandes monopólios, da produção de sementes à distribuição no varejo. A FAO está lutando por um modelo de produção e consumo mais local. Temos feito vários acordos, um deles, por exemplo, com o movimento Slow Food, que luta por o que eles chamam de transporte zero. A ideia de que cada localidade tem de buscar produzir o alimento de que necessita, valorizando produtos regionais, costumes e hábitos alimentares.

Parte dos bancos europeus tem proibições de investimento em fundos de commodities agropecuárias, o que limita a especulação. Esperamos que outros países e outros bancos adotem mecanismos de controle

E a última?

A quinta prioridade é a resiliência. Resiliência é a capacidade da população de resistir aos impactos das mudanças climáticas. Nós estamos cansados de trabalhar de inundação em inundação e de seca em seca. Às vezes nós temos, em um mesmo ano, em um país, uma seca e uma inundação, como ocorre na região do Sahel. É uma região desértica, mas na época das chuvas são três meses concentrados de muitas chuvas com inundação e depois são nove meses de seca absoluta. Isso tem solução. Podemos armazenar a água e evitar que a seca se transforme em fome.

Nós conseguimos muita coisa nesses dois anos, mas temos muito o que fazer e lembrar que a FAO é só um organismo de assessoria técnica. Não somos agentes financeiros, não temos recursos. Mas temos conseguido parcerias, por exemplo, com o Banco Mundial. Hoje a FAO tem orgulho de dizer que, embora nós tenhamos ainda 840 milhões de pessoas famintas no mundo, dos 128 países que a gente monitora mês a mês, 62 já alcançaram a primeira meta do milênio, que é reduzir à metade a proporção de famintos. Continuam os 840 milhões, mas nós já conseguimos que praticamente metade dos países em desenvolvimento tenham um programa de combate à fome, de alimentação escolar, de segurança alimentar.

Quais as grandes dificuldades para se alcançar essas cinco metas, além dos recursos financeiros?

O maior ingrediente que falta no menu do combate à fome é o compromisso político. Isso eu acho que o Brasil mostrou muito claramente. Quando o presidente Lula lançou o programa Fome Zero, muita gente ironizou. Hoje o Brasil exibe números para dar inveja no mundo todo pela rapidez com que conseguimos reduzir a mortalidade infantil, os subnutridos, botar em prática um programa de segurança alimentar e transformar a fome em uma questão política. Hoje ninguém discute mais se há fome. A gente discute a melhor maneira de se alcançar essas pessoas que precisam da ajuda do Estado. Isso falta na grande maioria dos países que ainda não logrou cumprir com a primeira meta do milênio de reduzir à metade os famintos. Falta sobretudo em algumas regiões do mundo, particularmente na África que, em função de conflitos internos, não consegue ter uma prioridade nacional. Eu sempre digo que para erradicar a fome não basta vontade de um governo, tem de ser vontade de uma sociedade. É uma meta de uma sociedade, não de um governo.

Já é possível verificar o impacto que esse recente acordo da OMC (Organização Mundial do Comércio) pode provocar no combate à fome?

É o primeiro grande acordo que nós conseguimos em termos de comércio mundial. Basicamente o acordo é dizer que a prioridade é a segurança alimentar. O país pode fazer o que for necessário para garantir a segurança alimentar dos seus cidadãos. Isso inclui comprar alimentos dos pequenos produtores. Por que a Índia estava brigando, por que o Brasil estava brigando, por que países menores, como o Níger, estavam brigando? Hoje, nós temos um problema de difícil solução: os que produzem os alimentos são os que passam fome. A solução está em produzir mais. Por que eles não produzem mais? Porque não têm dinheiro, não têm assistência técnica. Mas há uma coisa que falta além disso: mercado. O que eles produzem eles não têm para quem vender. Ninguém compra meia dúzia de ovos de uma senhora no interior do Quênia. Só compra se tiver um programa da merenda escolar que vai lá e compra esses ovos para usar na merenda escolar. Essa é a saída. Esses programas estavam condenados ou não autorizados pela OMC. Agora estão reconhecidos como legítimos.

Nessa questão da erradicação da fome, de que maneira a especulação, o mercado financeiro, podem acabar atrapalhando e retardando o cumprimento desse objetivo?

O mercado financeiro está entre os responsáveis pela subida dos preços dos alimentos. Não exatamente pela alta, mas pela volatilidade dos preços. Quando os preços estão em alta, o mercado financeiro faz a subida ser mais acelerada, e vice-versa. Quando os preços estão caindo, ele empurra mais para baixo, faz a queda ser mais demorada. Esse aumento dos extremos e da volatilidade tem a ver com as especulações financeiras de fundos de commodities que incluem os de alimentos. No pico de 2007 e 2008, hoje já há evidências suficientes para mostrar que a especulação financeira junto com o uso de grãos para combustíveis nos Estados Unidos e na Europa foram as duas grandes variáveis que empurraram os preços dos alimentos para esse patamar superior que temos hoje. O que tem sido feito até agora são mecanismos de controle voluntário. Muita gente desdenha esses mecanismos pedindo por intervenções mais rígidas. Praticamente os bancos alemães e boa parte dos bancos europeus, sobretudo os nórdicos, hoje têm proibições explícitas de investimento de fundos em commodities agropecuárias, o que limitou muito a especulação. Nós esperamos que outros países e outros bancos possam vir a adotar esses mecanismos de controle.

O que é mais efetivo no combate à fome: o agronegócio ou a agricultura familiar?

Lembrando que 2014 será o Ano Internacional da Agricultura Familiar. No Brasil, apesar dos investimentos crescentes, ainda há queixas de que não se dá a atenção devida a essa modalidade, em comparação com o agronegócio.
Tivemos a oportunidade de lançar na Assembleia Geral das Nações Unidas o Ano Internacional da Agricultura Familiar. Esperamos mostrar as diferentes caras da agricultura familiar no mundo, porque ela é de uma diversidade incrível. Aí se incluem produtores de alimentos, de produtos de exportação, pescadores artesanais, pastores nômades. Há uma grande diversidade de caras da agricultura familiar. Esse talvez seja o maior papel do Ano da Agricultura Familiar: queremos mostrar as caras para que eles adquiram sua identidade, para que eles possam ter orgulho de ser o que são. Há uma gradação quando falamos de agricultura familiar. Temos desde aquele pequenininho, que tem só um quintal praticamente, até unidades familiares que chegam a 100 hectares, como no Canadá, Estados Unidos, França e Alemanha. Isso não tira a noção de que são pequenos negócios, pequenas atividades geridas pela família.

Hoje, 80% dos alimentos do mundo vêm de segmentos distintos da agricultura familiar. Queremos que o mundo reconheça que eles são fundamentais na conservação do meio ambiente, porque têm uma atividade mais diversificada, não são monocultores, então ajudam a conservar a diversidade ambiental. Reconhecer que eles têm um papel fundamental na luta contra a pobreza. Se nós conseguirmos que cada um deles seja produtor local para mercados locais, erradicaremos a pobreza no mundo. Nós queremos também reconhecer neles uma sociedade mais democrática, no sentido de ter uma renda mais bem distribuída, ter uma propriedade distribuída melhor.

Eu não vejo uma contradição fundamental entre agricultura familiar e agronegócio. Sempre disse isso, é minha posição e tenho livros sobre isso. O agronegócio e a agricultura familiar concorrem por recursos do governo. Se o governo é capaz de fazer um menu de políticas para um e um menu diferente de políticas para o outro, e ter crédito para o agricultor familiar na medida em que ele precisa, e ter crédito para o agronegócio na medida que ele precisa, os dois têm papéis complementares importantes. No caso brasileiro, de um conflito evidente nos anos 2000, nós temos hoje uma convivência, uma cooperação entre agricultura familiar e agronegócio, porque a agricultura familiar também faz parte das cadeias produtivas. Não há uma cadeia produtiva no Brasil hoje, do milho, da soja, do arroz, do feijão, da cana-de-açúcar, que não tenha um componente majoritário de agricultores familiares. É um erro pensar que são cadeias exclusivas do agronegócio a soja, por exemplo, a produção de ovos, frangos, carnes, leite e tantos outros alimentos que, em geral, são identificados como agricultura familiar.

Participaram da entrevista os jornalistas João Peres (Rede Brasil Atual), Vitor Nuzzi (Revista do Brasil), Terlânia Bruno (Rádio Brasil Atual), Márcia Telles (TVT), Walter Venturini (ABCD Maior) e Gabriella Gualberto (Instituto Lula)

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