Conceitos jurídicos muitas vezes são fluidos, indeterminados, gerando, portanto, certa margem de discricionariedade para quem os interpreta. Essa órbita discricionária, porém, não pode em qualquer hipótese traduzir uma espécie de “aleluia jurídico”, permitindo ao exegeta extrair desses conceitos o que bem lhes aprouver, acomodando-os às demandas do momento. Zonas de certeza, positiva ou negativa, são sempre limites interpretativos que não podem ser rompidos.
Um desses conceitos fluidos é o de “crime de responsabilidade”, acomodado nos artigos 52 e 85 da Constituição Federal como fato gerador do impeachment de autoridades, dentre as quais o Presidente ou a Presidenta da República.
O impeachment nasceu na Inglaterra, consubstanciando, à época, em um processo parlamentar voltado à responsabilização política e criminal de altas autoridades públicas. Ao longo dos anos, contudo, dentro dos padrões próprios de uma ordem jurídica estribada no direito costumeiro, foi substituído pela moção de desconfiança e caiu em desuso. Ressurgiu nos Estados Unidos da América, com o advento da Constituição de 1787, a qual, contudo, separou a responsabilidade política da criminal: esta a cargo de processos judiciais, aquela a cargo de processos parlamentares.
O Brasil, como se vê, é herdeiro dessa tradição. Assim, um intérprete afoito e pouco afeito às práticas democráticas iniciadas com o Estado de Direito criado pela Constituição de 1988 poderia sacar a conclusão: se o processo é parlamentar, não há limites, não há regras, não existem condições. Nada mais enganoso.
Conceitos fluidos não atribuem àqueles que o operam poder nenhum que se sobreponha à Constituição. E esta, ao abordar crimes de responsabilidade, desfiou um rol de hipóteses motivadoras, as quais, por sua vez, só podem ser consideradas à luz das demais cláusulas constitucionais, como, entre outras, o devido processo legal.
Explica-se. Os que cogitam a possibilidade de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff o fazem amparados nas causas constantes dos incisos V, VI e VII, do art. 85 da Constituição Federal, a saber:
V – a probidade na administração;
VI – a lei orçamentária;
VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Os conceitos incorporados pelas cláusulas constitucionais em apreço já não são tão vagos assim, ou seja, possuem uma carga semântica que lhes denota claramente o conteúdo. Probidade administrativa, a primeira delas, só pode significar a violação a um dos dispositivos da lei 8.429/92, que trata das “sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências”. Ora, a Presidenta da República não foi, nem está sendo, sequer investigada pela prática de atos da espécie. Em outras palavras, não há, para o Direito, nem cogitação dessa possibilidade.
A hipótese do precitado inciso VI, da lei orçamentária, diz respeito às contas públicas, sendo certo que o art. 70 da Constituição prescreve que “a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional”, com auxílio do Tribunal de Contas. É bem de se ver: o Congresso Nacional não julgou as contas da Presidenta da República, em nenhum de seus exercícios, tornando, ainda uma vez, incogitável a possibilidade de impeachment com arrimo em tal previsão. Ademais, o sistema de controle de contas é amplo, contemplando diferentes possibilidades, como a sustação de contratos e a imputação de débitos, entre outras. Só uma coleção de condenações dessa natureza poderia render possibilidade de uma medida excepcional como o impeachment. É bom lembrar, a Presidenta Dilma Rousseff não foi condenada ou processada uma vez sequer.
A derradeira hipótese, de cumprimento das leis e decisões judiciais, abriga duas possibilidades. A primeira, de cumprimento das leis, que, à evidência, suporia, no mínimo, um processo judicial transitado em julgado em que se apontasse uma conduta presidencial eivada de ilegalidade. Esse processo não existe. A segunda, de cumprimento das decisões judiciais, pressuporia a condenação por um crime de desobediência a uma ordem judicial. Isso tampouco existe ou existiu.
O mandato político decorre de uma investidura popular, abrigada sob os influxos da previsão do parágrafo único do art. 1º da nossa Constituição, segundo o qual “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
O impeachment tem, assim, caráter excepcionalíssimo, fazendo com que suas causas motivadoras devam sempre ser interpretadas restritivamente. Buscar o impeachment sem que haja fatos — não os produzidos midiaticamente, mas os demonstrados judicialmente — implica agressão grotesca ao princípio fundante do Estado de Direito, o da soberania popular.
*Paulo Teixeira é mestre em Direito do Estado pela USP, deputado federal (PT/SP) e vice-líder do Governo na Câmara dos Deputados.
Texto publicado originalmente no site Migalhas
Foto: Alex Ferreira