Em 2018, diante da “difícil” escolha, a elite econômica optou por Bolsonaro.
Segundo Angela Alonso, Bolsonaro e Lula recorrem ao tema da soberania nacional, mas o bolsonarismo carrega bandeiras norte-americanas.
Angela Alonso poupou-me o trabalho tão necessário de comparar os discursos de Bolsonaro e Lula no Dia da Independência. De uma lado, a pátria neoliberal, hierárquica, religiosa e armada; de outro, o Estado-nacional social-democrata, igualitário, laico e tolerante. Em 2018, diante da “difícil” escolha, a elite econômica optou por Bolsonaro.
A sua eleição exigiu a instrumentalização de praticamente todas as instituições. Uma operação coordenada como poucas vezes se viu ao longo da nossa história.
A julgar pelo noticiário da semana sobre nossos vizinhos, a prática vem sendo utilizada com ainda mais desenvoltura, sem que a comunidade internacional, a classe política e a imprensa se manifestem frente aos escombros da democracia latino-americana.
O Brasil, em situação de normalidade, seria, pela sua importância, parte da solução dos problemas regionais. As reservas cambiais, o SUS e a tecnologia do Bolsa Família deram ao país condições únicas de enfrentamento da pandemia, infelizmente mal aproveitadas pelo atual governo, exemplo mundial de má gestão e conduta.
Enquanto isso, Equador e Bolívia vivem momentos de forte instabilidade democrática, não apenas pela perseguição política de ex-presidentes altamente populares (Rafael Correa e Evo Morales) como pela ousada tentativa de impedir que seus respectivos partidos lancem candidatos.
Se no contexto da Guerra Fria entre EUA e URSS várias democracias latino-americanas foram golpeadas por ditaduras militares, a presente guerra comercial entre EUA e China provoca desdobramentos geopolíticos e econômicos que abalam as estruturas da região e afetam países mais bem organizados, como Argentina e Chile.
Angela Alonso notou que os discursos de Bolsonaro e Lula recorrem ao tema da soberania nacional, “mas o bolsonarismo carrega bandeiras norte-americanas, enquanto o outro lado prefere a companhia de África e América Latina”. A subserviência do primeiro é flagrante. A exportação do aço brasileiro, por exemplo, foi dificultada, enquanto a importação do etanol americano foi facilitada.
Essa relação vassálica, sem dúvida, compromete a soberania nacional, mas o que tem passado despercebido é a perda de protagonismo político e diplomático regional do Brasil.
Nem falo de África, continente com o qual temos uma dívida histórica. Falo da América Latina, que, diante da crise do neoliberalismo global e dos desacertos do sistema-mundo, deveria se nos apresentar como “comunidade imaginada” supranacional em um projeto de integração radical.
Mas, para isso, precisaríamos ter escolhido um estadista.
Fernando Haddad é Professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.
Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo (12/09/2020)