Nos primeiros dez anos de vigência, o Estatuto do Desarmamento evitou 160 mil mortes. Antes da lei que estabeleceu regras e restringiu o acesso a armas e munições, em 2003, o índice de homicídios por arma de fogo crescia a 8% ao ano.
Em 2004 e 2005, houve a primeira queda. Dos anos seguintes até 2012, o índice voltou a crescer, mas em percentual bem menor, de 0,2%.
As informações são do Instituto Sou da Paz, que participou da formulação e aprovação da Lei 10.826/2003 e agora mobiliza a sociedade para evitar que a comissão especial da Câmara aprove projeto mais permissivo, em substituição à lei vigente. A votação da matéria está marcada para esta terça-feira (20).
“É um retrocesso enorme”, adverte o diretor executivo do Instituto, Ivan Marques, em entrevista exclusiva à Agência PT de Notícias. De acordo com ele, mais de 50% das armas usadas em homicídios são originárias de pessoas que compraram pelas vias legais e que foram parar nas mãos de criminosos.
Confira a entrevista na íntegra:
Agência PT de Notícias – A que o Sou da Paz credita as tentativas de mudança no Estatuto do Desarmamento?
Desde 2003, quando o Estatuto foi aprovado, houve várias tentativas para flexibilizar alguns quesitos, desde as categorias profissionais que teriam porte de armas até o cidadão comum, em relação ao registro, os requisitos técnicos, psicológicos e de justificativa para a obtenção de arma de fogo. O que mudou nessa situação é a conjuntura do Congresso, que está em um momento muito mais conservador, muito mais propício para propostas como essa. Além disso, tem a questão da indústria de armas, que vem tentando recuperar o mercado perdido com a regulamentação.
AGPT – O senhor falou sobre o conservadorismo da atual formação do Congresso. O novo projeto prevê, inclusive, liberar o porte de armas para parlamentares, entre outras autoridades. Como avalia isso?
Isso mostra como essa questão da vontade de andar armado supera qualquer necessidade real de prover segurança. É muito mais um fetiche pela arma de fogo ou mesmo uma demonstração de poder, do que uma necessidade de segurança. Afinal, deputados e senadores contam muito mais com aparatos de segurança do que outros cidadãos.
Imagine isso espalhado para todas as assembleias legislativas no Brasil. Além dos 531 deputados e 81 senadores no Congresso Nacional, a gente ainda tem essa questão para os deputados estaduais e vereadores.
AGPT – Quais são os principais benefícios que o Estatuto trouxe para a sociedade?
O primeiro deles é conseguir, em 10 anos, estancar o crescimento dos homicídios por arma de fogo no Brasil. Essa é a grande vitória do Estatuto.
Claro que só desarmamento, ou só o controle de armas, não é suficiente. Precisamos de outras ações de segurança pública para conseguirmos, de fato, começar a reduzir essa violência letal, principalmente a violência armada.
Do ponto de vista técnico, são muitas outras, como por exemplo, a criação de um banco de dados na polícia federal para o registro das armas vendidas. Isso faz com que as polícias tenham muito maior capacidade de investigar a origem dessas armas e achar os culpados por homicídios.
AGPT – Mesmo após o Estatuto, 71% dos homicídios no Brasil ocorrem por armas de fogo. A média mundial é de 40%. Por que os índices brasileiros são tão elevados?
A violência letal na América Latina em geral é desproporcional com o resto do mundo. Isso quer dizer que há uma oferta de armas de fogo muito grande no Brasil.
Apesar dos esforços do Estatuto do Desarmamento e todas as legislações de controle de armas, a gente ainda tem uma sociedade muito armada e a ligação do mercado legal, do cidadão que compra a arma para se proteger, proteger sua família, sua propriedade, com o mercado ilegal é muito nítida.
O Sou da Paz analisou 14 mil armas apreendidas por homicídios na cidade de São Paulo. Do total, 57% vieram do cidadão que comprou essa arma e acabou perdendo-a para a criminalidade.
AGPT – Quais os riscos da aprovação das mudanças no Estatuto, sob o nome de Estatuto de Controle de Armas de Fogo?
A gente tem um retrocesso enorme, principalmente nesses ganhos que eu coloquei. A primeira coisa é o porte de arma. Ele revoga essa possibilidade de só forças de segurança andarem armadas. Pelo contrário, passa a garantir o porte de arma para pessoas que simplesmente preencheram uma ficha e fizeram dois testes psicológico e de tiro, bastante simples.
Além disso, há verdadeiras bizarrices nessa lei. Hoje o Estatuto permite que as pessoas tenham até seis armas em casa. A nova legislação pula para nove sem qualquer justificativa plausível. Se a pessoa quer se defender, será que ela precisa de nove armas? A situação fica mais absurda ainda com relação às munições. Hoje o Estatuto prevê que você possa ter até 50 munições por arma, por ano. Com essa nova legislação, caso aprovada, isso passaria para 300 munições por arma ao ano. Se fizer a conta com as nove armas possíveis, o cidadão teria capacidade de comprar por ano até 5.400 munições. Será que alguém que precisa se defender precisa dar 5.400 tiros? Só favorece um ator nesse tabuleiro, que é a indústria de armas, que certamente vai vender não só mais armas, mas também mais munição.
AGPT – Como o senhor avalia a composição da comissão especial?
Muitos deputados foram financiados pela indústria para cumprir esse papel, inclusive o presidente da comissão especial. Essa comissão é pouco representativa da vontade da população. Há alguns dias a “Folha de São Paulo” lançou uma pesquisa falando que 62% da população é ainda restritiva em relação à arma de fogo do que a legislação atual.
Dentro do próprio PT, há uma posição que o Sou da Paz considera a melhor dos votos ali tirados na Comissão, que é do deputado Alessandro Molon, que já não está mais no PT, mas à época que ele apresentou o voto era da legenda.
O voto foi acompanhado pelo deputado Luiz Couto (PT-PB), que é um verdadeiro aprimoramento do Estatuto do Desarmamento. Enquanto outros projetos uma lei muito mais permissiva e que põe o Brasil de volta no cenário de homicídios descontrolados dos anos 90.
AGPT – Outros países possuem legislações semelhantes?
Tem um caso clássico da história do desarmamento, que é a Austrália. Houve um massacre há alguns anos e baniram armas de fogo e depois não teve mais nenhum massacre. A Inglaterra também baniu armas, a ponto de a equipe olímpica de tiro ter que treinar na França. O indicador de homicídio na Inglaterra é baixíssimo.
Temos a situação dos Estados Unidos, que talvez seja o país mais armado em termos de população civil. Os estados que têm alguma legislação de uso responsável e controle de armas são os que apresentam os menores indicadores de homicídios, enquanto que os estados que são mais flexíveis e não tem controle, sequer checagem de antecedentes criminais, apresentam indicadores criminais mais altos.
A experiência internacional nos mostra que ter uma legislação de controle e incentivar o uso responsável para aqueles que tem necessidade efetiva de ter armas é algo que funciona e ajuda demais nas políticas públicas de segurança.
Agência PT de Notícias