Em artigo, a deputada Maria do Rosário (PT-RS), ex-ministra da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Dilma, analisa a “barbárie” do estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro e que vitimou uma adolescente. Ela lembra também no texto a postura equivocada do delegado Alessandro Thiers, que perguntou se a jovem tinha o costume e gostava de fazer aquilo. Nesse sentido, a deputada apresentou na Câmara projeto de lei (PL3792/2015), para garantir a escuta protegida de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
Leia a íntegra:
Estado é inábil no trato com menores vítimas de violência
*Maria do Rosário
No fim do último mês a barbárie nos confrontou quando uma adolescente sofreu um estupro coletivo no Rio de Janeiro. Além da violência, a condução inadequada do delegado do caso despertou a atenção. A vítima disse que durante seu depoimento o delegado Alessandro Thiers colocou na mesa as fotos e o vídeo do abuso e perguntou se ela tinha o costume e gostava de fazer aquilo. Em entrevista, a adolescente afirmou: “Eu acho que é por isso que muitas mulheres não fazem denúncia”. Nós também achamos.
O relato da adolescente é um exemplo da inabilidade do Estado na condução da investigação sobre esse tipo de crime. O lema que se ouviu nas ruas –”a culpa nunca é da vítima”– deve orientar as ações dos operadores de justiça e também dos legisladores. O constrangimento, a dor e a revitimização dessa adolescente não podem seguir se repetindo com meninas e meninos em nosso país.
A ausência de procedimento padrão para o acolhimento das vítimas as deixam à mercê de delegados e investigadores sem a devida qualificação para a realização da escuta. São obrigadas ainda a repetir suas histórias e reviver o trauma diversas vezes.
O Judiciário avançou ao criar um protocolo de êxito comprovado para o atendimento a vítimas de até 18 anos. Esse protocolo, que está sendo implementado em Pernambuco, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, alcançou uma variação da porcentagem de agressores responsabilizados de 60% a 90%, sendo que fora dele o valor fica entre 4% e 6%.
Conhecendo essa experiência, propusemos junto à Frente Parlamentar dos Direitos da Criança e do Adolescente, Unicef e Childhood, o Projeto de Lei 3792/2015, que visa garantir a escuta protegida de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
O PL propõe a criação de varas especializadas em crimes contra a criança/adolescente, caracteriza as modalidades de violência e avança no detalhamento do procedimento da escuta qualificada e do depoimento especial, com vias a assegurar a segurança e proteção à vítima. Estabelece que a criança deverá permanecer em ambiente acolhedor, sendo assistida por transmissão eletrônica, e que o depoimento seja gravado, de modo que poderá ser utilizado sem que se faça necessário à vítima narrar novamente os fatos que vivenciou.
Aprovando este Projeto de Lei, iremos dar um passo no sentido da garantia de que os depoimentos de crianças e adolescentes sejam realizados por meio do apoio de equipe técnica capacitada, evitando-se ao máximo sua reiteração e o contato com o agressor. Ao impedir a repetição, afastaremos a possibilidade de que alterações no conteúdo, fruto da condição peculiar de crianças e adolescentes, sejam utilizadas para livrar os culpados.
Ao longo dos últimos anos, graças à luta por direitos das crianças, adolescentes e mulheres, aprovamos mudanças importantes no Código Penal. Agora, a resposta que precisamos dar à sociedade vai no sentido do combate à impunidade. Para tal, precisamos garantir que as vítimas se sintam seguras e instadas a denunciar, e que a investigação tenha as condições necessárias para a produção de provas que levarão à condenação do criminoso. Assim, o PL tem como propósito contribuir para que possamos responsabilizar os culpados pelos crimes que cometeram.
Crianças e adolescentes são violentadas todos os dias, na maior parte das vezes por familiares e conhecidos, entre quatro paredes. Não nos é dado o direito de nos tornamos indiferentes a essa realidade, a receber novos casos como apenas mais um, e muito menos relativizar a violência. A revolta deve ser permanente perante tais atrocidades, e deve servir para nos instar à ação.
*Maria do Rosário é deputada federal pelo PT-RS
Artigo publicado orginalmente no UOL