Reportagem especial realizada em Guaribas (PI), no ano passado para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), e que serviu de base para um documentário, aponta como as políticas públicas de inclusão social podem transformar histórias e vidas. A equipe de reportagem esteve na cidade cinco vezes, a primeira delas em 2003.
Leia a íntegra:
“Se, ao final do meu mandato, cada brasileiro puder se alimentar três vezes ao dia, terei realizado a missão de minha vida”. Essa frase foi a tônica do discurso de posse do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, empunhada como bandeira de luta nos oito anos seguintes à sua primeira eleição. Estava dada a largada para a implantação da maior e mais abrangente política de combate à fome colocada em curso na história do Brasil.
Nascia o Programa Fome Zero, que unificou as ações do governo em torno de um objetivo maior: varrer do mapa do Brasil a miséria e a fome, que acometiam, à época, 32 milhões de brasileiros e de brasileiras. Promessa cumprida. O Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome em 2014, segundo relatório global da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
Segundo os dados analisados pela FAO, entre 2002 e 2013, caiu em 82% a população de brasileiros em situação de subalimentação.
O início dessa conquista histórica foi no final de 2002 nas cidades de Guaribas e Acauã, ambas no Piauí, escolhidas para serem pilotos do Programa Fome Zero. Mas foi Guaribas que se tornou símbolo do programa. E não é pra menos. Guaribas permanece lá, fincada ao pé da Serra das Confusões, mas hoje se orgulha de receber seus visitantes com um grande portal de boas-vindas erguido numa clara demonstração de que o elo da corrente que prendia aquele pedaço de chão ao esquecimento dos governantes foi quebrado para libertar a terra até então invisível.
Vista de perto, Guaribas é palco de uma verdadeira revolução silenciosa. Vidas foram transformadas para melhor sem que fosse espocado um único tiro. Guaribas, enfim, passou a ser reconhecida como cidade. A poeira sépia que cobria o município cedeu lugar ao verde, a ruas calçadas, casas coloridas, praças e jardins. A transformação é tão grande que a maioria de seus moradores credita as melhorias aos desígnios de Deus. Não enxergam as mudanças como uma conquista de direito. Elizabeth, Norman e seus dois filhos, da família Nunes, que tiveram suas vidas contadas em vídeo ainda em 2003, assistem agora a história do seu passado com os olhos marejados. Com frases soltas, traduzem a força que tiveram para suportar os infortúnios daquela época. De casa nova, rebocada, pintada e coberta por telhas de cerâmica, o casal comemora a colheita do feijão. “Olha moça, eu era pobre, é verdade, eu não tinha nada. Hoje com o Bolsa Família eu como, posso dar de comer aos meus filhos e netos e já consegui comprar um monte de coisas para a minha casa”.
A fome e a miséria, que aprisionavam a população à desesperança é uma marca do que se foi. Gicela Alves Rocha, primeira beneficiária do Bolsa Família na cidade, relembrou:“Eu chorava de fome. Eu não tinha o que comer e não tinha o que dar para os meus filhos. Agora eu tenho orgulho de poder alimentar minha família”. Supermercados, pequenas e médias mercearias, verdurões, padarias e quitandas calam o ronco dos estômagos antes famintos. A fome acabou. Hoje nenhuma criança perde a vida por desnutrição! “Nós éramos uns arrasados. Ninguém aqui podia comer. Nós passávamos mais fome do que cachorro. Os meninos morriam porque não tinham nada para alimentar. Quando tinha alguma coisa era só café e açúcar”, lembrou Dermeval Rocha, que ao lado da esposa Marlene Rocha, debulha as vagens da recente colheita de uma saca de feijão. “Sofri para criar meus filhos catando carocinho de feijão”, completou Marlene, afirmando que hoje come “até carne”.
Vidas com mais dignidade brotaram na cidade junto com a água que começou a jorrar nas torneiras de todas as casas. No passado não muito distante, o calvário das mulheres começava no entardecer. A noite trazia junto com a escuridão os fantasmas da luta por um balde de água. O ir e vir com latas na cabeça esbarrava no pôr do sol e entrava madrugada adentro. As mulheres de Guaribas viam a noite chegar à espera da sua vez em alcançar um olho d’água. Enquanto os baldes e as latas de umas se enchiam pingo a pingo, outras mulheres se deixavam levar pelo ambiente hostil em que se transformavam as horas a fio de espera e a contenda quase constante por um pouco de água. Esse tempo de aguardo nas bicas acabou substituindo as noites de amor com seus parceiros, momentos que deveriam ser desfrutados pelos casais para acalentar as dores de tão miseráveis vidas. No pé do ouvido uma das mulheres, que não quer ver o nome citado, revela: “a gente não fazia mais sexo, os maridos viviam brigando com a gente achando que na serra a gente andava com homem. As famílias estavam se acabando. Você acredita que a água encanada uniu as famílias?”, perguntou-me com um sorriso desconfiado de quem acabara de fazer uma confissão de alcova.
O problema da água está resolvido. As torneiras se juntam às dezenas de cisternas que foram construídas em todo o município para captar a água da escassa chuva. Esses reservatórios ajudam a driblar o clima de deserto e dão a sensação de que a água por lá agora é perene. Uma ação proibitiva na São Paulo de hoje é quase uma mania em Guaribas: lavadores fazem esguichar a água para limpar carros e motos em dois estabelecimentos no centro da cidade. É aquele ditado: quem nunca comeu melado… e dá-lhe água em abundância e desperdício.
Se a água impulsionou novos negócios, o programa “Luz para Todos” também deu sua contribuição ao se encarregar de levar energia, de substituir as lamparinas por lâmpadas e de permitir que eletrodomésticos, até então inéditos na cidade, fossem conectados à rede elétrica. Tanquinhos, máquinas de lavar, liquidificadores, freezers e outras parafernálias são comuns nas moradias da Guaribas de hoje.
A autoestima da população, ainda que imensurável em estatísticas de melhoria da qualidade de vida, aumentou em progressão geométrica. Salões de beleza cuidam de homens e das mulheres, que hoje têm mais tempo para preocupar-se com o seu próprio existir com acanhadas vaidades.
Pequenos e médios negócios brotam aos borbotões. O aval solidário permite que homens e mulheres tenham acesso ao Crediamigo, programa de concessão de crédito do Banco do Nordeste (BNB). O dinheiro virou lojas de confecção, farmácia, lan houses,revenda de autopeças, boutiques, oficinas, etc. O assessor de crédito do BNB Lázaro Fernandes Carneiro informou que já foram atendidos 720 clientes e mais de R$ 4milhões emprestados para os microempreendedores. E com uma grande vantagem capaz de causar inveja em qualquer instituição bancária: em Guaribas a inadimplência é zero!
Dois postos de combustível abastecem a nova frota de veículos e de motocicletas que circulam pelas ruas arborizadas da cidade. Cleuton Simão da Silva morava em São Paulo e há três anos trabalha no Auto Posto Guaribas. Para ele, casado e pai de uma filha, tudo melhorou depois do Fome Zero e do Bolsa Família, “principalmente porque hoje eu posso viver com dignidade na cidade onde eu nasci e onde vive a minha família”.
O exemplo de Cleuton serve para mostrar que o fluxo migratório que inundava Osasco de guaribenses inverteu a sua lógica. É dos recursos dos antigos migrantes que são consolidados grande parte dos empreendimentos na cidade. Edicarlos Silveira Bastos morou oito anos em São Paulo e fez o caminho de volta. Em 2005 montou um supermercado, cuja renda lhe permite afirmar que o futuro dos seus filhos será diferente. “Eu passei fome e eles não vão passar. Eles têm estudo de mais qualidade e eu não tive. Enfim, eles vão vencer na vida com mais facilidade do que eu”.
As antigas habitações de taipa e palha foram trocadas por reboco e telha. Todas as casas ganharam banheiro. Lojas de material de construção revendem artigos que dão cor e forma às novas moradias. É como se uma aquarela tivesse despencado do céu para colorir essa nova Guaribas. Dona Valda, proprietária do Hotel Ferreira, o primeiro da cidade, renovou a pintura e assentou cerâmica na cozinha e na copa. “Tenho fé de que as coisas vão melhorar ainda mais. O governo federal não pode se esquecer de nós. Vocês enxergaram a gente”, disse ela, na esperança de que Guaribas possa receber muitos turistas para desvendar os segredos da Serra das Confusões e também para dinamizar seu pequeno negócio.
Mais 38 casas foram construídas pelo programa Minha Casa, Minha Vida. O vigia escolar Ronaldo Ferreira Silva e sua esposa Kailany Oliveira de Souza vão ocupar uma dasmoradias. Quase 90% do que ganham é para o aluguel e para pagar água e luz. “Felizmente vamos ter a nossa primeira morada própria. Esse é o sonho de quase todo mundo”, comemorou.
Agência dos Correios, um posto do Caixa Aqui e uma Lotérica mostram que o dinheiro circulante na cidade aumentou e conseguiu criar um círculo virtuoso de crescimento. Dois hoteis com café da manhã acolhem os hóspedes. Outro já está em fase de acabamento. Felipe, dono do hotel do mesmo nome, já pode oferecer um quarto com banheiro individual. A galinha caipira esfumaçando a mesa de almoço é servida para os hóspedes com arroz, feijão, salada, macarrão, carne de porco, macaxeira e pirão. Banquete pra ninguém colocar defeito!
Um pouco mais a frente, a churrascaria se apressa para colocar à mesa a carne de sol com macaxeira.
A Internet conecta a cidade com o resto do mundo e os celulares aproximam as pessoas e as famílias. “Perdi a conta de quantos filhos e netos eu tenho, acho que são onze filhos e trinta netos, mas hoje o celular funciona lá na sede e meus filhos dão notícia uns dos outros”, contou Eunice Jurema da Trindade, enquanto espalhava o feijão sobre a lona preta no chão do Povoado de Cajueiro.
Em Guaribas não tinha médico e nenhum profissional aceitava o desafio de viver na cidade. A tentativa de manter um médico morando por lá foi feita várias vezes com salários convidativos. Em 2005, tanto a Prefeitura Municipal quanto o Governo do Estado chegaram a oferecer R$ 15 mil por mês para contar com os serviços desse profissional por alguns dias da semana. Não deu certo. O problema só foi resolvido por meio do Programa Mais Médicos. A médica cubana Lídice Vasquez Castaneda hoje cuida da população. “Adotei Guaribas como a minha segunda terra. Adoro o povo desta cidade. Fui acolhida com muito amor e só tenho que retornar o que eu venho recebendo diariamente do povo daqui”.
A Estratégia Saúde da Família é a porta de entrada do usuário ao sistema de saúde e a cada dia se consolida como ordenadora das ações do setor. O município teve avanços significativos na execução das ações de Atenção Básica e de Vigilância em Saúde. Todas as gestantes são atendidas e fazem o pré-natal. A cidade zerou o indicador de mortalidade infantil. Em 2002, a taxa de mortalidade infantil para mil nascidos vivos era de 35,7. As mortes por diabetes e hipertensão foram reduzidas. Lédia e Braúlio, que viviam em cárcere privado por problemas mentais, hoje ganharam a liberdade de volta. Ela vive em uma comunidade terapêutica em Teresina. Ele pode desfrutar da convivência normal com seus familiares.
Uma Unidade Básica de Saúde e três Postos prestam os serviços essenciais. O município conta com dois médicos, quatro enfermeiros, doze agentes comunitários de saúde, dois dentistas, um psicólogo, um fisioterapeuta, sete agentes de endemias, um fiscal de vigilância e um nutricionista.
O Programa Bolsa Família atende a 70% das famílias residentes no município, todas elas acompanhadas semestralmente nas condicionalidades exigidas pelo programa e pelo Ministério da Saúde. Os doentes mais graves são encaminhados para a cidade vizinha de São Raimundo Nonato e para Teresina. Os moradores contam hoje com o acolhimento de profissionais que lhes permitem vislumbrar o alcance do direito mais básico: a cidadania, ainda que incipiente.
Os auspiciosos indicadores sociais borbulham também na área da educação. Os Programas Mais Educação e Caminho da Escola mostram que apostar no setor faz a diferença. A escola estadual Paulo Freire é motivo de orgulho para o município: 256 alunos estudam em tempo integral. Com mobiliários modernos, cozinha, refeitório,laboratórios de química e de informática e instrumentos musicais, a escola pratica o que de melhor existe em ambientes de parcos recursos financeiros: a solidariedade. O espaço físico, os livros da biblioteca e os laboratórios podem ser compartilhados por estudantes de outras instituições de ensino.
Outra escola, coordenada pelo Sesc, impressiona pela beleza e pela qualidade de suas instalações. Inaugurada em 2004, o espaço recebe alunos da educação infantil e ainda dá prioridade a outros jovens estudantes, cujos pais têm renda inferior a três salários mínimos. O secretário municipal de Educação, Gilberto Correa, explica que a instituição procura despertar também o lado lúdico nos alunos. Enquanto ele tentava dar entrevista, dez meninos corriam atrás da bola rumo ao gol na quadra coberta no interior da escola.
Há escolas municipais em todas as localidades do município. Mesmo que sem estrutura para o ensino em tempo integral, os estabelecimentos resistem às dificuldades – falta de alunos e séries diferenciadas na mesma sala de aula – em prol do aprendizado, tão necessário para assegurar um futuro ainda melhor para os guaribenses.
No Povoado de Zé Bento a população já deu os passos iniciais para o fortalecimento do cooperativismo. Uma casa de farinha, com 25 cooperados, foi doada para a Cooperativa. Com um empurrãozinho do Governo Federal a “fabriqueta” foi reformada, ganhou máquinas e equipamentos e continua a processar a mandioca, que se transforma pelas mãos dos cooperados em farinha, goma e beiju. Josemar da Rocha, que preside a Cooperativa, contou que a “linha de produção” funciona em harmonia. Todos colhem o que os outros plantam e trabalham juntos, descascando e processando a mandioca até o ponto final: a venda para o consumidor.
Com mais dinheiro circulando na própria cidade surgiu também uma dinâmica de desenvolvimento local mais inclusiva. A fonte de renda da maioria da população vem dos empregos na Prefeitura Municipal, dos repasses de programas sociais do Governo Federal e da aposentadoria dos idosos. Antes, os moradores de Guaribas recebiam e gastavam os vencimentos em Caracol. Para evitar os vazamentos, o dinheiro dos programas sociais e das aposentadorias hoje é retirado diretamente do Posto Avançado de Atendimento da Caixa.
A Cidade do Lula, como Guaribas foi batizada, só não está melhor porque padece com a falta de estrada. O acesso da população aos serviços e produtos é prejudicado e a carestia se impõe sobre os buracos do caminho que une Guaribas a Caracol. Mesmo com tantos avanços, o olhar sobre Guaribas pode ser embaralhado por quem não viu a cidade no passado. As conquistas parecem tão óbvias que podem cegar os olhares mais atentos. A obra não está terminada. Mas o que hoje brota do chão daquela terra – antes esquecida e maltratada – dá a certeza de que Guaribas está num caminho sem volta. O conjunto de políticas públicas implantado permite sonhar com um futuro mais promissor.
Dorian Vaz para a FAO
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