Como já ensinou o professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), o neoliberalismo não se contenta com um Estado que deixa o mercado “livre de intervenções”. Na verdade, o neoliberalismo adota como estratégia a tomada de controle do Estado para fazer com que os países adotem políticas em favor do mercado.
Em grande parte, foi disso que se tratou o golpe de 2016. O impeachment fraudulento que tirou Dilma Rousseff do poder foi a forma de o neoliberalismo tomar o controle do Estado brasileiro mais uma vez. E o resultado foi a aprovação, desde então, de leis que favorecem o mercado e reduzem a verba que o Estado usaria em favor da população. Em outras palavras, são leis que tiram o pobre do orçamento, como tem dito Lula.
No artigo ‘Sangrando o SUS’, publicado na Revista Focus, da Fundação Perseu Abramo (baixe o texto aqui), os economistas Bruno Moretti, Carlos Octávio Ocké-Reis, Francisco R. Funcia e Rodrigo P. de Sá e Benevides mostram como, a partir de 2016, o dinheiro que seria destinado ao Sistema Único de Saúde passou a ser desviado para “os detentores da riqueza financeira”. E tudo com ares de legalidade, uma vez que o desvio ocorre graças a emendas à Constituição encaminhadas pelo governo e aprovadas pelo Congresso Nacional.
Os quatro especialistas mostram que o assalto ao SUS tornou-se possível por meio da Emenda Constitucional 95, também chamada de Emenda do Teto dos Gastos, e pela Emenda Constitucional 109, conhecida como PEC Emergencial.
Primeiro passo: impedir o Estado de gastar
O Teto de Gastos congelou o orçamento federal da área social, incluindo a saúde, e definiu que o valor mínimo a ser destinado ao setor será sempre igual ao de 2017, atualizando apenas a inflação passada.
Trata-se de um absurdo, pois a nova regra nem mesmo considerou o crescimento da população, o que faz com que o gasto em saúde por brasileiro (per capta) diminua ano a ano. De acordo com os autores do artigo, se o Teto de Gastos não existisse e a regra anterior ainda valesse, o SUS teria recebido, entre 2018 e 2022, R$ 36,9 bilhões a mais do que acabou recebendo.
Este foi o primeiro passo: reduzir a parcela da arrecadação federal destinada à saúde pública. Faltava, porém, tomar esse dinheiro para si. E foi aí que entrou a PEC Emergencial.
Segundo passo: apossar-se do dinheiro não gasto
Criada com a desculpa de dar continuidade ao auxílio emergencial durante a pandemia, a Emenda Constitucional 109 foi um verdadeiro Cavalo de Troia do governo Bolsonaro à população, pois permitiu justamente que o dinheiro da saúde fosse para os ricos.
Como isso foi feito? Por meio do artigo 5º da emenda, que instituiu uma importante mudança: até o fim de 2023, o superávit financeiro (dinheiro não gasto pelo governo) dos fundos públicos do Executivo pode ser destinado à amortização da dívida pública. Simplificando: o dinheiro destinado à saúde que o governo não gasta pode ser usado para pagar a dívida pública.
Ou seja, o Teto de Gastos impede que o governo invista uma grande parte do dinheiro em saúde. E a PEC Emergencial permite que esse dinheiro vá para aqueles que detêm os títulos da dívida pública. E quem são esses? Os autores respondem: “os proprietários da riqueza financeira”. E mais: essa regra não vale só para a saúde e também se aplica a outros fundos, relacionados a educação, cultura e outras áreas. Ou seja, é muito dinheiro indo para os que já têm muito dinheiro.
Para ficar claro de vez, vale ler o seguinte trecho do artigo: “Na verdade, há uma forte conexão entre a Emenda 95 e a Emenda 109, que acabou aprofundando a política de austeridade fiscal em meio ao recrudescimento da pandemia: o Teto de Gastos limita artificialmente a ação do Estado, impedindo a execução de recursos, ainda que haja receitas disponíveis para financiá-la. Quando os gastos não são realizados, o recurso se converte em superávit financeiro e pode ser desvinculado de suas finalidades, sendo canalizado para a amortização da dívida pública”.
Dinheiro do petróleo
Em seguida, os autores mostram como esse desvio ocorreu com a parte do dinheiro do pré-sal que deveria ter ido para a saúde, mas não foi. Para entender, é preciso lembrar que a Lei 12.858/2013, sancionada por Dilma, estabelece que 25% dos royalties do petróleo sejam destinados à saúde.
Pois bem, o valor desses royalties vem subindo, mas o Teto de Gastos impede que os gastos com saúde e educação subam junto. Como o dinheiro a mais arrecadado não é usado, vira superávit, que acaba indo para a dívida pública.
E sabe quanto desse dinheiro foi para os donos dos títulos da dívida em 2021? R$ 41,4 bilhões, dos quais R$ 8,3 bilhões deveriam ter ido para o SUS. E, em 2022, outros R$ 3 bilhões devem ser desviados da mesma forma, totalizando R$ 11,3 bilhões em dois anos.
É por isso que, segundo os autores, as Emendas 95 e 109 retiraram, juntas, pelo menos R$ 48 bilhões do SUS entre 2018 e 2022. E concluem: “A combinação de regras que articulam a contenção de gastos e a desvinculação das rendas petrolíferas, em prejuízo das políticas sociais, demarca o aprofundamento de um modelo de Estado gestado a partir da ruptura institucional de 2016, em que o orçamento público e a exploração do pré-sal já não se orientam pela garantia de direitos e pela indução do crescimento econômico inclusivo e sustentável”.
PTNacional