O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, em entrevista ao Estado de São Paulo, defende posição do País na crise hondurenha, fala sobre sua filiação ao PT e rebate as críticas de que o governo Lula partidarizou a diplomacia brasileira..
Ele disse que estão “equivocados” os que acham que o País está isolado na questão nuclear iraniana. A seguir, os principais trechos da conversa com o chanceler brasileiro.
Por que o sr, diplomata de carreira e chanceler, decidiu se filiar ao PT?
Estou terminando minha gestão no Itamaraty. Sou diplomata aposentado, além do mais. Mas aposentadoria não é a morte. Interesso-me por política – isso não significa que serei candidato. Se quisesse, teria sido agora. Quero ter um envolvimento na política e me identifico mais com o PT. A maioria dos meus antecessores, com exceção do governo militar, pertenciam a partidos.
Mas não diplomatas de carreira.
Não penso assim. Veja meu antecessor, Celso Lafer. Foi tesoureiro de campanha do PSDB. Roberto Campos, diplomata de carreira, não foi chanceler, mas foi ministro. Sinceramente, isso é um não-assunto.
O sr. seria chanceler em um eventual governo Dilma Rousseff?
Não sei, não tenho mais ambições. Pretendo levar da melhor maneira esse período final do governo, ao qual me orgulho de ter servido.
Seus críticos reclamam da ”partidarização” da diplomacia, dizem que a agenda do PT está ofuscando tradicionais objetivos do Itamaraty.
Primeiro, o governo não é só o PT, mas o PT dentro de uma coligação. Eu, aliás, fico muito satisfeito quando vou ao Senado e à Câmara e – tirando esse período eleitoral – recebo muitos elogios.
Mas, da última vez, dois da membros oposição bateram boca com o sr.
É porque estamos em ano eleitoral. Respeito a opinião dos outros, não estou dizendo que estão certos ou errados. Há alguma diferença de concepção quanto à diplomacia, mas a maior distinção é que nós não nos limitamos a falar. Nós fizemos.
Há reclamações de uma afinidade excessiva da atual política externa com países como Venezuela e Cuba. O sr. discorda?
Não vejo isso de maneira tão dramática. Fui ministro do presidente Itamar (Franco) e levei a Cuba uma carta dele sobre certos temas. O próprio governo Fernando Henrique Cardoso teve uma cooperação razoável com Cuba.
Agora parece ser diferente. Na última visita a Havana, Lula comparou prisioneiros de consciência cubanos como criminosos comuns brasileiros.
Já comentei o que tinha de comentar a esse respeito. O presidente fez uma autocrítica em relação à greve de fome que fez em São Bernardo. Agora, cá entre nós, quando houve greve de fome na Irlanda do Norte ninguém nos pediu para romper com a Grã-Bretanha. Há maneiras de agir. É muito fácil fazer condenações e colocar um diploma na parede. O difícil é contribuir efetivamente para uma melhora.
Mas, ao comparar presos de consciência com criminosos comuns, o presidente não dá um voto de legitimidade ao sistema cubano?
Não vejo que ele tenha feito a comparação entre uns e outros. O presidente comparou situações. Cada um tem seu estilo, suas metáforas.
Outra frase do presidente Lula que marcou muito foi a de que os protestos, no Irã, contra a eleição de junho, eram “choro de perdedor, como uma coisa entre vascaínos e flamenguistas”.
Vocês querem que eu comente o estilo do presidente. Esse estilo é apoiado por 85% dos brasileiros. O que interessa é que o Brasil não vai intervir em um tema interno iraniano e irá se relacionar de Estado para Estado com o Irã.
Mas, novamente, não foi uma intervenção? Não estaria Lula legitimando uma eleição amplamente contestada?
Não acho, de forma nenhuma, que seja uma intervenção. Reflete a experiência dele diante de coisas que assistiu no Brasil. Seria muito pretensioso, nesse caso específico, achar que teríamos alguma influência. O que temos procurado trabalhar com o Irã é o caso do dossiê nuclear.
Antes de falar sobre o programa nuclear, o sr. considera a questão de direitos humanos no Irã um empecilho para a aproximação do Brasil com Teerã?
O ideal é que o mundo todo fosse feito de democracias. De preferência com um componente social, como a nossa. Mas não é assim. Não vou responder a sua pergunta como você quer e a recoloco: a ausência de democracia é empecilho para os EUA – país que seu jornal mais admira, e eu também – estabelecer relações com alguém? Pergunte a um ministro americano se ele pensa em romper laços por causa de violações de direitos humanos.
O caso iraniano é bem particular. O Irã caminha desde junho para uma ditadura brutal, com repressão na rua e a Guarda Revolucionária tomando de assalto o país. Nesse contexto se dá a aproximação brasileira.
Não vejo da forma que você coloca. O Irã é formado por circunstâncias diversas, que vêm desde a traumática ruptura com os EUA.
Sobre o dossiê nuclear do Irã, há em paralelo um programa balístico e todos sabem que Teerã fez uma usina secreta em Qom…
Não defendemos nada disso. Queremos o que (o presidente Barack) Obama defendia até pouco tempo, mas parece estar desiludido. Tudo isso que você estava enumerando já existia. O que há de novo é uma proposta da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) para a troca de urânio levemente enriquecido por elementos combustíveis para o reator de pesquisa de Teerã. Achamos que ainda é possível trabalhar sobre a proposta – assim como os turcos, membros da Otan e vizinhos do Irã, provavelmente os últimos a querer uma bomba iraniana. Chamam-nos de ingênuos, mas acho muito mais ingênuos os que acreditam em tudo o que o serviço de inteligência americano fala. Veja o caso do Iraque. O último relatório da AIEA sobre o Irã não traz fato novo. O que tem é um novo tom, pois mudou o diretor-geral. Converso com muita gente e não vejo o Irã perto de fazer uma bomba. A maioria dos analistas tampouco acredita que isso está próximo.
O artigo de capa da última “Foreign Affairs”, prestigiada revista de especialistas, diz exatamente o oposto.
Mas isso virou uma polêmica ideológica. Um artigo publicado nos EUA colocava a estimativa mínima entre três e cinco anos para se obter uma bomba. Supondo ainda que eles queiram fazer. Não estou dizendo que eles querem ou não. Mas é possível fazer um acordo que dê conforto relativo – pois absoluto não há – de que o Irã não terá um arsenal nuclear mínimo a médio prazo, ao mesmo tempo respeitando o direito iraniano de ter energia nuclear para fins pacíficos. É absurdo achar que o Brasil é pró-Irã. Veja o que diz (Thomas) Pickering, que trabalhou com a (ex-secretária de Estado dos EUA) Madeleine Albright, ou o (ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Zbigniew) Brzezinski. Outro dia até o Estadão publicou um artigo – fiquei feliz – defendendo a mesma coisa que nós. Dizer que Pickering é pró-Irã é estar no mundo da Lua, sinceramente.
Ahmadinejad fechou um acordo com AIEA e depois recuou. Como o sr. vê esse vaivém?
Os EUA também chegaram a condenar Honduras na OEA e depois recuaram, porque senadores não confirmavam um embaixador.
São situações comparáveis?
Claro que não. Estou dizendo que em todos os lugares há posições variadas. O Irã, independentemente do julgamento de valor, certamente tem um sistema político plural.
Não é o que pensam os dissidentes iranianos, sobretudo desde junho.
Um dos primeiros a condenar o acordo com a AIEA foi o (líder da oposição Mir Hossein) Mousavi. O Irã tem um sistema plural, apesar de todas as suas limitações. Não estou falando que é a democracia pluralista que queremos. Acho, honestamente, que o Irã devia ter aceito a oferta da AIEA que permitia o enriquecimento. Mas não é porque recusaram que diremos “então está bem, vamos para guerra”. Ou “vamos para sanções”, que podem não ter efeito ou punir a população.
Então, se uma resolução nos atuais termos vier, o Brasil votará contra.
Não darei essa informação. Ainda temos de analisar.
O vice-presidente José Alencar afirmou que uma bomba iraniana só teria fins defensivos. O sr. concorda?
Você só me pergunta sobre o que os outros dizem (risos). Respeito muito o vice-presidente e não comentarei. Surpreende-me a falta de informação. Achar que o Brasil é pró-Irã ou que está isolado é totalmente falso. Nem deveria invocar esses exemplos, mas como é tão importante para um certo grupo da elite brasileira saber o que os outros pensam… Outro dia na TV disseram que Honduras foi um “tropeço” nosso. Não vejo absolutamente nenhum tropeço nesse caso. Aliás, nossas posições públicas foram iguais às dos EUA. Eles nunca abriram a boca para nos criticar por dar abrigo ao (presidente Manuel) Zelaya. Só a mídia nacional e
alguns políticos fizeram isso.
Hoje, olhando para trás, o sr. avalia que a decisão de abrigar Zelaya beneficiou a crise hondurenha?
Foi corretíssima, positiva para a coerência do Brasil. É espantoso que jornais que foram obrigados a publicar receita de bolo em suas páginas por causa da censura de um governo militar achem justificável um golpe de Estado. Isso me espanta. Houve um erro e não devemos permitir que ele sirva de exemplo. Aliás, mutatis mutandis, o golpe hondurenho se assemelha muito ao de 1964. Todo mundo diz que o Brasil cometeu um fiasco, como se não fosse correto dar abrigo a um presidente legitimamente eleito, tirado de sua casa na ponta de um fuzil.
Nenhum grande jornal do Brasil defendeu o golpe. Para o “Estado”, o novo regime era “governo de facto”. O que se questionou foi, por exemplo, o fato de Zelaya convocar uma “insurreição” – foi essa a palavra usada – de dentro da embaixada brasileira.
O que você queria que eu fizesse? Pegasse o Zelaya e botasse na rua? Aí sim teríamos uma chance de guerra civil. Chegamos para ele e dissemos “você fica, mas não fale mais isso”. Eu, pessoalmente, disse a ele: “Presidente, por favor não use a palavra morte”. E ele respeitou. Enviados americanos iam à embaixada brasileira falar com Zelaya. Só se chegou a uma conclusão – que, certamente, não foi a ideal – porque abrigamos Zelaya.
Recentemente, a revista “Foreign Policy” afirmou que o sr. é o “Henry Kissinger brasileiro”. Como o sr. vê a comparação?
Não tenho o brilhantismo do professor Kissinger (risos). E ainda acho que sou um pouco mais idealista do que ele.