Direitos reprodutivos e a regulamentação das Técnicas de Reprodução Assistida no Brasil – *Adilson José Paulo Barbosa

adilson_assessoria1. Introdução – A concepção de direitos reprodutivos vai além da simples proteção da reprodução, na medida em que busca a interação de direitos sociais, como direitos à saúde, à educação e ao trabalho, com os direitos individuais à vida, à igualdade, à liberdade, à inviolibidade e a sexualidade, com o objetivo de “reduzir as violações à autonomia pessoal, integridade física e psicológica de que são alvos indivíduos e coletividades, e garantir os meios necessários para o ser humano alcançar seu bem-estar sexual e reprodutivo”, conforme lembra Miriam Ventura.

O uso ou o direito ao uso das chamadas Técnicas de Reprodução Humana Assistida- TRHA’s é parte de um direito maior a reprodução da espécie. Objeto de disputa, entre outros, por grupos feministas e religiosos, é definido como a intervenção médica no processo de procriação, como o objetivo de resolução de problemas de infertilidade humana ou esterilidade, considerando riscos mínimos a pacientes ou possíveis descendentes .

Assunto dos mais polêmicos na contemporaneidade, a manipulação genética de células e tecidos humanos por médicos e cientistas tem sido objeto de calorosos debates em todo mundo. A conclusão do mapeamento e do seqüenciamento do genoma humano, em 2003 (Projeto Genoma Humano), o anuncio da clonagem de animais e a possibilidade da produção de tecidos específicos a partir de células-tronco embrionárias, abriu fronteiras inimagináveis para ciência médica e a pretensão e o desejo sempre esperado de curas das doenças e o conseqüente aumento da vida de cada ser humano sobre a terra. Esse avanço da ciência, contudo, para alguns autores, como Habermas, corre o risco de “descambar” em uma nova “eugenia liberal”, onde o “direito” a “contingência” de uma identidade, possa ser substituído pela escolha “irreversível” de um mercado global _ sempre preocupado em otimizar custos e aumentar a qualidade do “produto” – e sob o espectro de idéias “neodarwinistas”.

A partir do debate sobre questões morais, de bioética, sociojuridicas e religiosos, entre outras, a regulamentação do uso e manipulação de células embrionárias, para fins terapêuticos (como inseminação artificial) ou pesquisas científicas, já foi realizada em diversos países. No Brasil, apesar do “nosso” primeiro bebê de proveta já ter mais de vinte anos (Ana Paula, outubro de 1984), não há ainda uma lei específica sobre o tema.

A Constituição Federal, o Código Civil e outras normas legislativas esparsas fixam princípios e regulam algumas situações, como a gestação de substituição (“barriga de aluguel”) e a presunção biológica de paternidade. A norma mais abrangente, todavia, é uma Resolução do Conselho Federal de Medicina. Nela, além de procedimentos biomédicos polêmicos referentes à aplicação das TRHA’s, são regulados, até mesmo, aspectos civis, como por exemplo, o grau de parentesco da “doadora” de útero. Na seqüência, analisamos em rápidas e sintéticas pinceladas a legislação sobre o tema no Brasil, os Projetos de Leis, que tentam regular a matéria, em trâmite no Congresso Nacional, e os principais questionamentos presentes no debate público sobre certos aspectos que envolvem a manipulação genética de embriões e suas diversas possibilidades de “aplicação” e “uso”, a partir da Resolução CFM N° 1358/1992.

2. Tratados internacionais e a Constituição Federal

No plano internacional, o Brasil é signatário, juntamente com mais 185 (cento e oitenta) países membros da UNESCO, da Declaração Universal sobre o Genoma Humana e os direitos Humanos, que entre outros princípios, veda a clonagem de seres humanos. No plano interno, não há uma norma constitucional específica, mas os fundamentos da república, em especial, a dignidade humana, ao lado de outros dispositivos sistematicamente interpretados, respaldam um direito a “procriação segura e digna” aos cidadãos residentes no país. Por um lado, sempre amparado pelo direito fundamental a uma “existência digna” (art. 5°), a Constituição Federal “protege” o meio ambiente e “nele” o patrimônio o genético (art. 225, incisos II e V). Por outro, garante o direito fundamental à livre expressão científica (art. 218) e determina que o Estado, fundado nos princípios da dignidade humana, da paternidade responsável e da livre decisão do casal, propicie o planejamento familiar (art. 226, § 7º). Garantia que se junta, ao direito a saúde e o conseqüente acesso universal e igualitário a “serviços” de saúde integral (art. 196 e segs.) e a proibição de comercialização de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, (Art. 199, § º), com o mesmo propósito.

3. Legislação infraconstitucional

Antes da promulgação da Constituição Federal, no entanto, a Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, proibia a manipulação genética de células germinais humanas, mas permitia a intervenção em material genético humo in vivo, para tratamento de defeitos genéticos, a partir do aval, no caso concreto, da CTNBIO. Essa lei, contudo, foi revogada pela nº Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005 , que mantendo a proibição de clonagem e engenharia genética em organismo vivo ou célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano, em seu art. 5º, permitiu “(…) para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento (…), atendidas certas condições . Ou seja, os chamados embriões excedentários podem ser utilizados para pesquisas.

4. Planejamento Familiar

Regulando o referido § 7º, do art. 226, da CF, a Lei nº. 9.263 de 12 de Janeiro de 1996, estabeleceu que para o exercício do direito ao planejamento familiar, o Estado deve oferecer “todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção”.

5. O novo Código Civil e a insuficiência da abordagem

O “novo” Código Civil, promulgado em 2002 e vigente em 2003, por sua vez, regulou e garantiu o reconhecimento de filhos “havidos” por fecundação ou inseminação artificial homóloga ou heteróloga. Reconheceu também os filhos havido por fecundação artificial homólogo post mortem, ou seja, após a morte do marido. Só que o fez de forma insuficiente. Assuntos como a identidade do doador, parentesco deste com os beneficiários e eventuais direitos pessoais ou patrimoniais contra o pai biológico e a própria regulação dos procedimentos admitidos na inseminação artificial, como o número de embriões a serem implantados no útero, ficaram de fora ou estão reguladas por normas infralegais.

6. Normas infralegais ou paralegais

Além das leis acima, o tema é disciplinada por Resoluções e Portarias do Ministério da Saúde , da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, e pelo Conselho Nacional de Saúde, através da RESOLUÇÃO Nº 196 DE 10 DE OUTUBRO DE 1996, que aprovou “Normas de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos”. Apesar da CF, do Código Civil e das normas mencionadas, a “Lei” mais abrangente e específica sobre a matéria é, de longe, a RESOLUÇÃO Nº 1.358/92 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, que aprovou “Normas Éticas Para Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida”.

7. A Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina (alguns questionamentos)

Considerada norma paralegal, cujos parâmetros deontológicos devem ser seguidos pelos profissionais da área, sob pena de “punições”, a Resolução n°1358/1992, vai além da fixação de princípios éticos e deveres “procedimentais”. Estabelece proibições e condições para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Pela sua amplitude, é, sem dúvida, a principal, senão a única, norma a regular em detalhes a aplicação e uso de TRHA. A Resolução do CFM “enfrentou”, de forma direta e indireta, parte significativa das polêmicas presentes no debate interno e externo associado às TRHA’s, inclusive regulando a doação temporária de útero (barriga de aluguel), antes mesmo do Código Civil. A seguir “investigamos” os pontos mais polêmicos e possíveis “omissões” da Resolução, que, adiante-se, também são objeto de diversos Projetos de Lei que tramitam, no momento, na Câmara dos Deputados, e sobre os quais também teceremos comentários.

7. 1. Aplicação
A Resolução autoriza o uso das técnicas de reprodução ou procriação assistida apenas para mulheres solteiras ou casais (casados ou não), desde que presente o consentimento do cônjuge ou companheiro. É omissa em relação a homens solteiros e casais do mesmo sexo.

7.2. Consentimento livre e esclarecido
Princípio básico de qualquer pesquisa com seres humanos, a Resolução exigem que os beneficiários (pacientes inférteis) e doadores sejam informados sobre todos os detalhes e riscos da reprodução humana assistida e manifestem, em documento escrito, consentimento para sua realização.

7. 3. Quantidade de embriões que podem ser implantados no útero (“numero ideal”)
A Resolução não fixa o número de oócitos e pré-embriões a serem transferidos para a receptora. Apenas estabelece que o número ideal não deve ser superior a quatro, com o intuito de não aumentar os riscos já existentes de multiparidade. Para alguns especialistas, quatro seria o número máximo e não ideal. Por se tratar de um procedimento oneroso para a/ou beneficiários e sujeito a falhas após o implante uterino, alguns médicos tem implantado mais até que o número “ideal” de embriões, o que, em caso de “nidação”, pode levar a necessidade de “redução” embrionária, ou como afirmam alguns, a uma forma de “aborto”.

7. 4. Inicio da vida, descarte e uso de embriões para pesquisa

A Resolução proíbe a fecundação de oócitos humanos, com qualquer outra finalidade que não seja a procriação humana, permitindo, contudo, a criopreservação de pré-embriões, que não podem ser descartados ou destruídos. Apesar desse dispositivo, a Lei nº 11.105/2005, já mencionada, permitiu, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, desde que os embriões sejam inviáveis ou estejam congelados há três (três) anos ou mais. Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. Objeto de uma Ação Direta de Constitucionalidade (ADIN – 3510), ainda que com “placar” apertado (6X5), o dispositivo foi considerado constitucional, não deixando, no entanto, de suscitar acirrados debates sobre a “moralidade” do uso. Para alguns o início da vida humana se daria apenas a partir do décimo quinto dia, sendo aceitável pesquisas até o décimo quarto dia. Para outros, esse início se dá com a fecundação, não importando, do ponto de vista prático (ético), se os embriões utilizados para as pesquisas forem “excedentes” ou se eles foram produzidos para os fins de pesquisa. A Resolução, adotando, ao que parece, a primeira posição, determina que o “tempo máximo de desenvolvimento de pré-embriões “in vitro” será de 14 dias”.

7. 5. Seleções, intervenções e redução embrionária
Em caso de gravidez múltipla, decorrente do uso de TRHA’s, a Resolução proíbe a utilização de procedimentos que visem à redução embrionária. A Resolução também veda o uso das técnicas de RA com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer.

7. 6. Doação e identidade do doador

A Resolução veda comercialização de gametas ou pré-embriões, mas permite que os casais doem as “sobras embrionárias”. A identidade dos envolvidos deve ser preservada, mas as clínicas, centros ou serviços que empregam a doação devem manter, de forma permanente, apenas para fins médico, um registro com dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores.

7.7. Diagnóstico e tratamento de pré-embriões

A Resolução permite que as técnicas de RA, mediante consentimento do “casal”, também possam ser utilizadas na preservação e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, quando perfeitamente indicadas e com suficientes garantias de diagnóstica e terapêutica. O diagnostico e as intervenções para tratamento de pré-embriões, diante das possibilidades de manipulação que as novas tecnologias oferecem, assustam filósofos como Habermas. Para o filósofo alemão, no texto sob “O Futuro da Natureza Humana”, o perigo da heterodeterminação eugênica não pode ser excluído se uma intervenção genética que modifique características for realizada de maneira unilateral, ou seja, não for considerada a atitude clínica em relação a uma segunda pessoa, cujo consentimento se possa contar.

7. 8. Gestação de substituição (doação temporária do útero ou barriga de aluguel)

As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética. As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

8. Projetos de Lei no Congresso Nacional

Atentos ao debate, desde 1988, parlamentares têm apresentado inúmeros Projetos Lei visando “disciplinar” a matéria. No momento, resultado da fusão de dois Projetos de Lei já aprovados pelo Senado Federal, encontra-se na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), da Câmara dos Deputados, para análise e votação o PL nº 1.184, de 2003, visando regulamentar o uso das técnicas de Reprodução Assistida (RA) para implantação artificial de gametas ou embriões humanos, fertilizados in vitro, no organismo de mulheres receptoras e definir o que é embrião humano para fins da reprodução artificial ou assistida. Com o mesmo objetivo e conteúdos variados, mas como o mesmo foco, foram apensados ao PL nº 1.184, de 2003, supra, para análise e votação conjunta, outros 13 (treze) Projetos de Lei. De maneira geral, a maioria das proposições legislativas “ratificam” as principais decisões tomadas até o momento sobre as TRHA’s, expressas, como visto, na CF e em diversas normas e atos de hierarquias variadas vigentes no atual ordenamento jurídico pátrio. Algumas proposições, no entanto, regulam de forma diferenciada pontos importantes, como por exemplo: fixam em dois o números de embriões fertilizados in vitro que podem ser transferidos para a receptora; excluem mulheres solteiras e parceiros do mesmo sexo da aplicação e uso das TRHA’s; permite que todos os nascidos de TRHA’s possam conhecer a identidade dos pais (doadores) biológicos; e, claro, proíbe qualquer pesquisa com células embrionárias. O ponto em comum, sem dúvida, é a criação de novos tipos penais, com o estabelecimento de penas de prisão, além da previsão de penalidades de natureza administrativas e ético funcionais. Entendendo que os PL’s não inovam em relação às leis existentes no país e que o Ministério da Saúde, a ANVISA e o CFM devem ditar a normas sobre a matéria, o Relator apresentou Parecer pela rejeição de todos os Projetos. O Parecer ainda não foi votado pela Comissão.

9. Conclusão

Apesar da proteção constitucional e da regulação legislativa de alguns pontos que envolvem diretamente as TRHA’s, a verdade é que os impressionantes avanços da medicina genética superam em muito a capacidade de regulação ético/jurídica de certas técnicas e praticas genética. Diversas questões continuam em aberto, a começar pela própria necessidade ou não de regulação legislativa (por lei) das TRHA’s. Como visto, as normas éticas do Conselho Federal de Medicina são votadas somente para a conduta ética de seus associados. Mesmo esta norma, deixou em aberto aspectos importantes relativos à amplitude, forma e condições para certas intervenções e pesquisas genéticas com embriões. A adoção de uma regulação legislativa é vista por muitos como uma ameaça aos avanços da ciência nacional. A experiência de outras nações, contudo, mostram um debate mais transparente sobre os limites éticos e jurídicos, no uso de TRHA e tecnologias genéticas. Tempos atrás ouvimos um Professor, hoje reitor, num debate sobre “revisão constitucional”, afirmar que, “talvez, o debate sobre a Constituição fosse algo muito sério para ficar apenas entre juristas”. A reflexão sobre a “condição humana” e os “riscos” de instrumentalização da “natureza humana” oriundos do eterno esforço do homem para se afastar da sua condição de ser originário da natureza, sobrepondo-a mediante a cultura, a ciência e a técnica, como alertou Hannah Arent, deixa uma indagação. A manipulação genética não é algo muito sério para ficar apenas no domínio dos cientistas ???

*Advogado – Assessor da Liderança do PT na Câmara

 

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