O completo descaso de Jair Bolsonaro (PL) com o meio ambiente potencializou a crise humanitária no Rio Grande do Sul e, consequentemente, os desafios enfrentados pelo país para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. É o que afirmam ambientalistas a respeito da permissividade do governo do ex-presidente com o avanço das construções às margens de lagos e rios.
No final de 2021, Bolsonaro sancionou a Lei 14.285, que altera o Código Florestal do Brasil, concedendo autonomia aos municípios em relação às chamadas Áreas de Preservação Permanente (APP). A remoção ilegal da vegetação ciliar enfraqueceu a proteção de áreas de risco, constituindo grave retrocesso frente o atual cenário de calamidadades ambientais.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, criticou a aprovação da medida pelo Congresso e a posterior sanção pelo ex-presidente.
“Essa lei deu uma espécie de cheque em branco para os municípios reduzirem a proteção das matas ciliares em plena crise climática. E vemos, não só com as enchentes terríveis que afetaram o Rio Grande do Sul, que nós teremos problemas, na verdade, no Brasil inteiro”, advertiu.
À época, junto com outras entidades ambientais, o Observatório do Clima pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que declarasse o regramento inconstitucional, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.146, sob o argumento de que os municípios não podem alterar a legislação para além dos limites impostos pela União.
Permissividade
A aprovação da Lei 14.285 se deu depois de intenso lobby do setor de construção civil, com o apoio do vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marcelo Ramos (PSD-AM), e do relator do projeto, o deputado Darci de Matos (PSD-SC). A autonomia dos municípios prevê que eles mesmos definam os limites das APPs.
A lei é originária de um processo analisado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) acerca da construção de uma casa a uma distância de menos de 30 metros do rio Itajaí-Açu, em Santa Catarina. O STJ deferiu recurso do Ministério Público do estado e decidiu se guiar pelos parâmetros estabelecidos no Código Florestal. Em resposta, o projeto contra o meio ambiente foi aprovado em regime de urgência pelo Congresso.
“Se cada município puder definir a metragem na área urbana já consolidada, isso é muito negativo, porque daí não seria necessário nem usar todo aquele processo de regularização que é previsto na lei federal. Se o município considerar que uma APP é menor, ela não precisa mais passar por um processo de regularização, ela já é uma área não protegida”, criticou Ana Maria Nusdeo, professora de Direito Ambiental da Universidade de São Paulo (USP).
Nusdeo argumenta que a nova norma pavimentou caminho para que os municípios sejam mais pressionados pelo setor imobiliário a fim de alargarem as áreas de habitação, incluindo locais próximos das margens de rios e lagos.
“Essa lei é criticada, inclusive, porque ela não tem um marco temporal. A legislação federal já permite a regularização, com a supressão da vegetação em área urbana consolidada desde que, seja, por exemplo, para equipamentos, se for questão de parque urbano, uma área que já está degradada.”
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Tragédia climática no Sul
À Folha, o engenheiro ambiental Rafael Tímbola lamentou que alguns dos cenários vistos em todo o Rio Grande do Sul sejam irreversíveis. De acordo com ele, as matas ciliares protegem o canal dos rios e lagos contra danos e erosões ao longo do tempo. Na região do Guaíba, partes de terra deslizaram para dentro do lago, ampliando a área de risco.
“A vegetação tem função de manutenção da biodiversidade, então tanto a flora quanto a fauna servem como corredor ecológico e como filtro para o escoamento das águas pluviais que, ao chegarem na mata ciliar, são filtradas, fazendo com que o sedimento fique retido e a água passe para o rio”, afirmou Tímbola.
”A bacia do rio Taquari foi altamente atingida em função de não haver mata ciliar na parte mais baixa. O rio ficou desprotegido e consequentemente as pessoas que estavam em volta também. Então o que a gente observa hoje é o descumprimento da legislação, e isso potencializa os efeitos no lago Guaíba”, concluiu.
Da Redação, com Folha de S.Paulo e Agência Pública