Em artigo, o deputado Wadih Damous (PT-RJ) analisa a mudança em esferas do Judiciário a partir da divulgação precipitada das delações de Emílio Odebrecht e de Leo Pinheiro que atingiram em cheio políticos até então preservados pela Operação lava Jato. “Só que os novos delatados, pertencentes ao seleto clube das classes dominantes brasileiras, não poderiam receber o mesmo tratamento da ralé de esquerda. A sangria tinha que ser estancada…”, diz trecho do artigo.
“Para tornar a mudança de ventos mais assimilável pelos críticos costumeiros do carnaval curitibano, resolveu-se começar por José Dirceu, como boi de piranha. Assim, pensou-se, calariam aqueles que enxergassem oportunismo e seletividade na atitude dos magistrados inovadores. Não que José Dirceu não merecesse, por justiça, a ordem de habeas corpus que colocasse fim ao longo cárcere decretado por capricho do ministério público e do juiz de piso. Só que o merecia já muito antes, condenado que foi com pífia prova de reforço a suposições sem lastro”. Leia a íntegra:
A soltura de José Dirceu e o jogo das aparências
Wadih Damous
O golpe parlamentar transformou o Brasil num país sem lei. A cada dia novas notícias deprimentes nos assolam. Quando não são os nove sem-terra chacinados em Colniza (MT), são três manifestantes do MTST que são presos por motivo fútil, mantida a prisão para deleite de uma magistrada aparentemente militante dos celerados que ajudaram destituir uma Presidenta eleita com 54 milhões de votos.
Quando não são índios Gamela atacados por fazendeiros sanguinários que lhes decepam as mãos, é Mateus assaltado covardemente por um capitão da PM de Goiás, que lhe afundou o crânio com uma cacetada tão forte que quebrou o cassete. E tudo se passa sem uma palavra de condolência, de conforto dos atores golpistas instalados no governo federal; sem uma promessa de providências do procurador-geral da República, preocupado demais com a ideia fixa de “combate” à corrupção. Parece que as instituições estão de férias, deixando o descalabro correr solto.
Segurança jurídica? O que é isso? Depois que um juiz de piso – como gosta de dizer o meu amigo Eugenio Aragão – da provincial Curitiba se arrogou poderes de subverter o devido processo legal ao jogar para a plateia ao invés de jurisdicionar, pode se esperar tudo. As demais instâncias, seja por razões de comodismo, seja por conivência ou seja por pusilanimidade, sacramentaram largamente as práticas “excepcionais” para “tempos excepcionais”.
Quatorze reclamações disciplinares contra o juiz de Curitiba foram arquivadas no CNJ. Ele tudo pode. Até mesmo tornar públicas interceptações realizadas em comunicação telefônica que não interessavam ao processo, somente para destruir as reputações dos interlocutores. Ficou por isso mesmo. O juiz virou um popstar. E nenhuma pecha nele gruda.
Isso, claro, enquanto o magistradinho estava se limitando a dar suas caneladas na turma do PT. Todos o festejavam e batiam palmas para maluco dançar. E enquanto palmas se batiam, maluco dançava feliz.
Com a divulgação precipitada das delações de Emílio Odebrecht e de Leo Pinheiro, contudo, parece que a bonança acabou em Curitiba. As palmas parecem querer silenciar. Ao menos as mais entusiasmadas delas, as palmas institucionais. Não que a divulgação tenha obedecido à mesma dinâmica perversa das publicidades anteriores, com timing calculado para destruir toda e qualquer chance de sobrevida política de atores do PT. Desta vez, a ostentação das delações escapou como um salve-se quem puder. Os relatos eram de um vulto tal, que não tinham como ser mantidos longe da curiosidade pública por muito tempo. Tornaram-nos públicos para salvar a cara do ministério público, já no fim do segundo e provavelmente último mandato de seu chefe. Não havia como esconder tanta sujeira por debaixo do tapete, sem que seu sucessor não o fosse obrigado a expor eventual omissão.
Só que os novos delatados, pertencentes ao seleto clube das classes dominantes brasileiras, não poderiam receber o mesmo tratamento da ralé de esquerda. A sangria tinha que ser estancada, ainda que, para tanto, as instâncias omissas ou coniventes agora se apropriassem do discurso crítico ao carnaval judicial curitibano. Antes tidas como coisa de juristas esquerdistas e blogueiros de pouco eco, as críticas agora passariam a fazer parte do repertório do magistrado supremo porta-voz da elite política e financeira: Moro estaria agindo arbitrariamente ao manter longas prisões processuais com escopo de moer a resistência de potenciais delatores; essa prática, agora mereceria a mais veemente reprimenda da corte suprema.
Às favas com a coerência. Para tornar a mudança de ventos mais assimilável pelos críticos costumeiros do carnaval curitibano, resolveu-se começar por José Dirceu, como boi de piranha. Assim, pensou-se, calariam aqueles que enxergassem oportunismo e seletividade na atitude dos magistrados inovadores.
Não que José Dirceu não merecesse, por justiça, a ordem de habeas corpus que colocasse fim ao longo cárcere decretado por capricho do ministério público e do juiz de piso. Só que o merecia já muito antes, condenado que foi com pífia prova de reforço a suposições sem lastro da acusação, apenas para perpetuar o seu calvário político. Não, soltá-lo nada tem de errado. Errado é esperar tanto tempo para lhe garantir a liberdade que nunca deveria ter sido surrupiada. É saber que seu cárcere apenas obedecia à lógica da extorsão de delação para comprometer alvos políticos certeiros, como o PT e Lula, e nada ter-se feito por tanto tempo. Escandaloso é determinar a soltura de José Dirceu somente para garantir um precedente que possa aproveitar outros ameaçados por Curitiba que pertençam ao clube dos intocáveis.
Fez-se Justiça a José Dirceu, ainda que por aberratio ictus, por erro quanto à pessoa, pois quem se quis beneficiar nada tem a ver com ele.
E assim anda a carruagem de nosso estado de direito destroçado. Ninguém se preocupa com a aplicação da lei para todos. Preocupam-se em passar a mão na cabeça de alguns, ainda que para isso tenham que, a contragosto, beneficiar outros como sacrifício necessário para manter as aparências.
Enquanto isso, esperneiam os Dallagnois da vida, porque, coitados, até hoje não haviam entendido como a orquestra toca. Finalmente aprenderam a duras penas que foram “useful idiots”, poupados nas suas extravagâncias tão e só porque ajudaram com o trabalho sujo de solapar o processo político democrático; mas que não pensem que podem continuar tocando terror no País, porque, agora, os jogadores são outros. E saberão punir exemplarmente qualquer insolência advinda da burocracia privilegiada do ministério público e da justiça de primeiro grau. Que se cuidem e não se metam a besta. Temer não é Dilma e Gilmar não é Lewandowski, só para lembrar…
*Deputado federal pelo PT/RJ e ex-presidente da OAB/RJ