O Brasil não tem o que celebrar, após os cinco anos do Golpe de Estado que interrompeu o mandato de Dilma Rousseff à Presidência da República. Para muito além dos desacertos institucionais que o Brasil vive, dos retrocessos no convívio político e na impostura de Jair Bolsonaro, o Golpe de 2016 resultou numa grande tragédia social.
A Emenda Constitucional 95, apresentada por Michel Temer e aprovada pelo Congresso Nacional em 2016, trouxe cortes significativos no orçamento da área social, mas era só o preâmbulo do apocalipse orçamentário aprofundado por Jair Bolsonaro sob a égide do neoliberalismo doentio do ministro Paulo Guedes. Agora, passados dois anos da extrema-direita no poder central, é possível antever os graves prejuízos sociais que o país acumula.
Um levantamento do professor Nelson Cardoso Amaral, mestre em física e doutor em educação, da Universidade Federal de Goiás (UFG), publicado no início de abril no site A Terra é Redonda, dá a dimensão dos amplos cortes promovidos por Bolsonaro em áreas vitais, como educação, saúde, cultura, meio ambiente, ciência e tecnologia. E também como o governo federal está desembolsando mais para manter o refinanciamento da dívida e assegurando amplos recursos para a única área poupada dos cortes: a defesa nacional.
Amaral mostra que o governo restringiu de maneira criminosa as despesas com as 69 universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia, bem como as 38 instituições e dois centros federais de educação tecnológica (CEFETs). A faca de Guedes foi brutal na educação. Houve um corte de 28,5% nos recursos para o ensino, no Orçamento da União entre 2014 – último ano do governo Dilma – e 2020, sob a batuta do governo Bolsonaro.
A ciência sofreu pesadas represálias da equipe econômica e sentiu a navalha cortando os fundos nacionais de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), além das verbas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
O levantamento do professor Nelson Cardoso Amaral mostra que a redução de recursos ultrapassa 57%, entre 2014 e 2021. “Foram aplicados valores em torno de R$ 12 bilhões em 2014. E, em 2021, a previsão é de que sejam aplicados R$ 5 bilhões. É uma queda de R$ 6,7 bilhões. Isto representa uma redução de 57,1% nos recursos financeiros aplicados nesta função”, aponta.
“Com Michel Temer houve um recrudescimento dos ideais liberais e houve a implantação de um novo regime fiscal com a aprovação da EC 95, que congelou as despesas primárias – pagamento de salários, água, luz, internet, vigilância, limpeza, terceirizados, aquisição de material de consumo, realizar construções, adquirir equipamentos e mobiliários – por 20 anos”, lembra o professor. “Com Jair Bolsonaro foi estabelecido como objetivo principal do governo a desconstrução do que foi realizado desde a aprovação da Constituição Federal de 1988”, denuncia.
Este objetivo está expresso no programa de governo – O Caminho da Prosperidade. “Nos últimos 30 anos o marxismo cultural e suas derivações com o gramcismo se uniu à oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira”, justifica o programa. Amaral lembra que o próprio Bolsonaro anunciou a desconstrução das políticas sociais como objetivo político. “Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa para depois começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão, já estou muito feliz”, disse o presidente ainda em 2019.
Os recursos associados à saúde também mostram o desapreço do governo Bolsonaro para a manutenção do Sistema Único de Saúde (SUS) em plena pandemia. Apesar do salto ocorrido em 2020 com a liberação extra de recursos para a saúde – graças ao esforço do PT e outros partidos de oposição no Congresso Nacional – o gesto não irá se repetir em 2021. Em 2014, o Orçamento da União previa repasses de R$ 130 bilhões para a saúde. Para este ano, o governo vai destinar pouco mais de R$ 100 bilhões. Significa dizer que, em plena segunda onda da pandemia do Covid-19, o governo federal vai investir menos do que Dilma em seu último ano do primeiro mandato.
“O ano de 2020 se comportou de forma atípica pela liberação de recursos especiais para o atendimento à pandemia causada pelo coronavírus”, aponta Amaral. “A queda dos valores de 2014 para 2021 são da ordem de R$ 28,7 bilhões, o que representa um corte de 21,6% em 2021, em relação a 2014”, compara.
Inimigo dos artistas e da cultura, Bolsonaro também demonstrou na prática como trata na política o país que deu ao mundo a bossa nova, o tropicalismo, a poesia moderna, o teatro de Cacilda Becker e Nelson Rodrigues, a literatura de Guimarães Rosa e Jorge Amado. Na cultura, houve uma queda drástica dos recursos destinados pelo governo nos últimos seis anos.
Com Dilma, o governo assegurou, em 2014, R$ 2,5 bilhões para as políticas públicas setoriais na cultura. Em 2019, os valores chegaram a R$ 200 milhões. A redução foi brutal neste período: R$ 2,3 bilhões foram cortados. “Isso significou uma queda de 90,2% nos valores de 2020 em relação a 2014”, aponta o professor da UFG, que ressalta que houve uma recuperação na proposta orçamentária para 2020. “O dinheiro saltou para R$ 703,0 milhões”, pontua. “Mas o valor é ainda muito distante daquele de 2014”.
Na área ambiental, o pouco apreço de Bolsonaro e do ministro Ricardo Salles pela defesa das florestas, da biodiversidade e do patrimônio verde do Brasil se expressa nos números. Os recursos para a área ambiental sofreram uma abrupta queda: de quase R$ 10 bilhões – reservados por Dilma – para R$ 1 bilhão que o governo Bolsonaro prevê investir em políticas de preservação ambiental em 2021.
Ao tempo em que cortou de maneira brutal na área social, a dupla Bolsonaro e Guedes não se esqueceu de beneficiar o sistema financeiro. Não é à toa que, apesar do fracasso na gestão da pandemia, da recessão brutal que o Brasil atravessa e o aumento da desigualdade e da pobreza, os ricos vão muito bem. Isso é percebido claramente no levantamento feito pelo professor Nelson Cardoso Amaral.
Em 2014, o refinanciamento da dívida girou na ordem de R$ 800 bilhões, caindo para R$ 500 bilhões em 2019 – primeiro ano do governo Bolsonaro. Mas, daí em diante, a reversão das expectativas da banca é inversamente proporcional aos cortes promovidos na área social. “Há um grande crescimento com essas despesas em 2020 e 2021. A previsão é atingir valores superiores a R$ 1,1 trilhão”.
Também há um incremento no orçamento federal para o pagamento de juros, encargos e amortização da dívida. Se em 2014 a previsão era de R$ 400 bilhões, cinco anos depois do golpe houve um aumento. A previsão de gastos em 2020 com essa despesa saltou para R$ 650 bilhões. E, apesar de o governo prever uma queda este ano, o patamar continua elevado: R$ 500 bilhões serão destinados pelo governo para o pagamento da dívida.
“Uma análise acoplada desses dois gráficos nos leva a concluir que a queda na necessidade de refinanciamento, de 2014 a 2019 se deu por um maior pagamento de juros, encargos e amortização da dívida nesse mesmo período”, aponta o professor da Universidade Federal de Goiás. “A elevação do refinanciamento da dívida se deve a dois fatores principais: 1) endividamento devido aos elevados recursos vinculados à pandemia; e 2) o aumento da dívida pública para o pagamento de parte das despesas primárias do governo federal pela quebra da chamada regra de ouro”, explica,
A quebra de regra de ouro ocorre quando o governo tem que emitir títulos além dos valores associados às despesas classificadas como investimento. Neste caso o Congresso Nacional é responsável por autorizar a emissão de títulos da dívida para o pagamento das despesas primárias do governo federal.
“A comparação dos perfis desses dois gráficos com os anteriores – sempre com drásticas quedas – sinaliza que o setor financeiro é uma prioridade nesse período”, conclui o professor. “Isso reflete o conteúdo da Emenda Constitucional 95 que congelou por 20 anos as despesas primárias e não estabeleceu nenhum limite para as despesas vinculadas a esse setor”.
O outro setor que se beneficiou da guinada promovida pelo Golpe de 2016 mostra porque o nível de adesão ao governo dos militares se mantém alto. O levantamento do professor Nelson Cardoso Amaral mostra que, de 2015 a 2019, houve um aumento de R$ 37,6 bilhões nos recursos associados à função Defesa Nacional no Orçamento da União. Apesar de ter ocorrido uma queda em 2020 e 2021, tal redução ainda significará uma elevação de R$ 25 bilhões em relação ao valor de 2015, o primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff. “Também neste caso, da Defesa Nacional, percebe-se um perfil completamente oposto ao das funções discutidas anteriormente, o que nos leva a afirmar que a Defesa Nacional foi considerada prioritária, frente à educação, saúde, cultura, gestão ambiental e ciência e tecnologia”, destaca o professor.
Resumo da ópera: Bolsonaro e Guedes tiram recursos do povo no Orçamento da União para privilegiar os ricos que ganham dinheiro com a rolagem da dívida e se beneficiam dos altos juros bancários. O outro grupo social que também é beneficiado pela política fiscal do governo Bolsonaro são os militares. Para manter os oficiais das Forças Armadas satisfeitos, o Palácio do Planalto e o Ministério da Economia não apenas pouparam os projetos de Defesa Nacional dos cortes impostos a outras áreas no
Orçamento da União. Nos últimos anos, apesar da crise e da recessão, que aflige os quase 15 milhões de desempregados, o governo ampliou o volume de verbas para o setor em detrimento da área social.
Da revista Focus, da Fundação Perseu Abramo