Em entrevista exclusiva sobre a PEC das Domésticas, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ) lembrou o histórico da luta e se emocionou. A trajetória política da parlamentar sempre esteve fortemente vinculada à luta pelos direitos das trabalhadoras domésticas – profissão que ela também exerceu – e a promulgação da PEC representa uma “segunda abolição da escravatura”, na opinião de Benedita.
Quais os significados históricos, simbólicos e políticos da PEC?
Quando digo que a PEC é a segunda abolição da escravatura, faço a comparação com três leis que marcaram a história do Brasil e, especialmente, do povo negro. A Lei do Ventre Livre, que nós comparamos hoje com a necessidade de se erradicar o trabalho infantil, mas que, na sua época, também significou a desobrigação dos senhores de escravo de alimentar mais uma boca. E então as crianças negras ficaram sem direito à educação, sem referência social, sem fazer propaganda de sabonete e sem ver a sua imagem reproduzida na televisão. Depois veio a Lei do Sexagenário, que libertou pessoas que já tinham dado o melhor da sua energia, que não tinham mercado de trabalho. Nós comparamos aquela lei à luta do povo da terceira idade, dos aposentados em busca dos seus direitos. Meu pai, por exemplo, tem 105 anos e possui aposentadoria, mas só teve a sua carteira assinada após longos e longos anos de muito trabalho. E a Lei Áurea, que foi um avanço institucional importante, mas também não havia mercado de trabalho para aquelas pessoas e, então, as mulheres negras continuaram a fazer todos os serviços: trabalhavam nas casas, nas lavouras, nas confecções… cuidavam da comida, das roupas… e depois passaram a selecionar as mulheres brancas para serem as babás, os brancos para serem porteiros, mas as negras para serem cozinheiras, faxineiras e outras funções mais isoladas do contato. Toda essa cultura escravocrata nós quebramos no momento em que damos direitos iguais aos trabalhadores. Curiosas são as queixas de quem reclama disso: ‘não tem competência, não tem qualificação, não tem educação’, mas até agora as domésticas tinham tudo isso. Agora, sim, vão ter muito mais, porque vão poder estudar, deixar os filhos na creche, na escola. No final das contas, o que faltou ser feito em 1888, com a Lei Áurea, estamos introduzindo agora. Mas ainda temos muita coisa pela frente. Por exemplo, temos que acabar com essa história de ‘trazer uma menina do interior’ para trabalhar nas casas. E ainda usam a justificativa da desigualdade: ‘é melhor trabalhar do que ficar por aí’. Nada disso, é melhor ter escola, ficar estudando, ter uma boa educação para quando chegar à idade certa estar pronta para qualquer mercado de trabalho. Falamos que a aprovação da PEC é uma segunda abolição porque, na verdade, esse trabalho é um regime escravocrata.
Existe risco de desemprego em massa decorrente da PEC?
Não, de modo algum. Primeiro porque a informalidade nessa área já é uma coisa horrorosa. Segundo porque hoje nós temos um mercado de trabalho muito promissor, com recorte de gênero, com políticas públicas inclusivas. Não cabe essa história de dizer que haverá desemprego em massa. Vamos ter um novo aprendizado nas nossas relações de trabalho nessa área. O que os pais de classe média fazem com a criança para que ela não fique o dia inteiro na frente da televisão? Levam ela ao cinema, ao parque, para tomar sorvete, para o McDonalds. Se fizermos as contas, isso sai muito mais caro do que os custos que serão gerados com os direitos das domésticas. O governo está preocupado com isso e já está pensando em meios de desonerar o empregador, que não vai ter desculpas para dizer que não pode pagar. A nossa sociedade está querendo se tornar cada vez mais independente e, para isso, as pessoas precisam ser também independentes, devem reorganizar o seu tempo.
Essa medida pode contribuir para a melhor distribuição de renda?
Acredito que essa medida vai se somar ao esforço que o governo vem fazendo ao longo da última década – que permitiu que tirássemos 36 milhões da miséria e agora mais 26 milhões – e que mudou a vida de cada cidade, mudou o Brasil. Essa PEC vai mexer com a vida das pessoas, vai mudar o País consideravelmente e para melhor.
O “medo do novo” explica um pouco a rejeição da classe média à PEC?
Sim, temos muito medo do novo. Sempre foi assim quando lutamos por direitos, como quando as mulheres morreram queimadas na fábrica [em Chicago, 1857]; quando os abolicionistas lutaram pelo fim da escravidão, foi assim – e disseram que o Brasil ia quebrar – quando instituíram as férias, a carteira assinada, o salário mínimo e a redução da jornada de trabalho, mas não aconteceu nada. Foi assim, inclusive, quando Lula virou presidente, mas aconteceram tantas coisas boas e depois as pessoas quiseram mais e então reelegeram Lula. E depois quiseram um pouquinho mais e elegeram a Dilma – e certamente vão pedir um pouco mais e vão reeleger a Dilma.
O que a senhora diria aos empregadores brasileiros que vão ser afetados pela PEC?
Esses empregadores não estão fora desse momento histórico do Brasil, que é um resgate da dignidade, e todos nós somos protagonistas de um novo momento. Nós também teremos um outro olhar para esses empregadores e espero que eles vejam essa situação com altivez.
Como foi sua emoção de ver a PEC promulgada, após tantas décadas de luta por esta categoria?
[Quando Benedita começa a responder, as lágrimas escorrem pelo seu rosto, que também estampa um sorriso, porém] Na hora da votação final, quando eu estava ao lado da Creuza [Maria Oliveira, da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas] e da ministra Delaíde [Miranda Arantes, do Tribunal Superior do Trabalho], nós nos emocionamos muito e eu comentei com elas: ‘estas nossas mãos embalaram tanto, limparam tantos, limparam tantos tapetes… e agora estamos aqui’. Naquele momento eu me lembrei da Constituinte, quando eu recebia no meu apartamento todas as empregadas domésticas que vinham para as mobilizações, me lembro de quando levávamos o então deputado Lula para falar nas comissões em favor dos nossos direitos, já que ele tinha muito prestígio e liderança. Enfim, no momento da promulgação da PEC, eu não estava lá como a deputada Benedita, eu estava como a mulher que lutou tanto para que isso acontecesse. E eu agradeço a Deus por ter me permitido ver este momento.
Rogério Tomaz Jr.