A retirada do auxílio sem recuperação da renda do trabalho já impactou significativamente a pobreza e agravará o desemprego.
A pauta da população versus a pauta do governo
por Gleisi Hoffmann
O caos sanitário vivido pelo Brasil, em meio ao negacionismo oficial, resulta em mais de 230 mil óbitos por COVID-19, segundo dados do Ministério da Saúde. O boicote governamental ao combate à pandemia e seus efeitos não está apenas na área de saúde, mas também na pauta econômica neoliberal. A economia já desacelerava na passagem de 2019 para 2020, dada a insistência com a austeridade fiscal. A pandemia agravou o quadro. No trimestre concluído em novembro de 2020, o Brasil tinha mais de 32 milhões de pessoas subutilizadas, conforme dados da Pnadc/IBGE.
Como aponta a experiência internacional, o combate à pandemia e a recuperação da economia requerem ampliação de gastos públicos. Com estas finalidades, nos Estados Unidos, Joe Biden lançou pacote de US$ 1,9 trilhão, diante de um quadro marcado pela perda de 10 milhões de ocupações entre o início da pandemia e janeiro de 2021.
Enquanto isso, o Brasil fará a maior contração fiscal entre todos os países em 2021, reduzindo os gastos em 8% do PIB, conforme o projeto de lei orçamentária anual. Tudo pelo ajuste ao teto de gasto. Sequer há recursos no projeto orçamentário para habilitar leitos de UTI para COVID-19, que passaram de 12 mil em dezembro para 3,2 mil em fevereiro[1], mesmo com o aumento do número de pacientes.
O governo também não previu recursos para o auxílio emergencial no projeto de lei orçamentária. A retirada do auxílio sem recuperação da renda do trabalho já impactou significativamente a pobreza e agravará o desemprego.
É preciso que o Congresso mude o arcabouço fiscal, particularmente revogando o teto de gastos, regra sem paralelo no resto do mundo. Emergencialmente, é necessário ampliar despesas para atender às necessidades crescentes da população, especialmente as relacionadas à saúde e ao auxílio. Conforme já demonstrado em 2020, não há falta de recursos para realizar os gastos.
Como a dívida pública é predominantemente interna, o Brasil liquida sua dívida na moeda que emite, de modo que, por definição, não há risco de default. Além disso, com juros internos baixos, o custo médio do estoque da dívida pública federal acumulado em 12 meses caiu quase pela metade nos últimos anos, alcançando 8,37% em dezembro de 2020. O cenário externo é marcado por taxas de juros reais negativas, viabilizando a manutenção de juros internos baixos. Neste contexto, não há qualquer dificuldade para o país ampliar gastos, combatendo a pandemia e seus impactos sobre a população. As restrições fiscais são artificiais e visam conter o Estado.
Ao invés de enfrentar a pandemia, o governo quer votar na Câmara dos Deputados o projeto de lei de autonomia do Banco Central. O projeto prevê mandatos fixos para os diretores, não coincidentes com os do Presidente da República. A intenção seria afastar influências políticas do Banco Central, que, pautado pelo controle da inflação, teria a autonomia para subir juros quando necessário.
O Banco Central já funciona com autonomia operacional e a aprovação do projeto ampliará sua captura pelo mercado financeiro, pois seus dirigentes não mais se submeterão às decisões do governo eleito pelo voto popular. Nos países centrais, após a crise de 2008, os bancos centrais têm operado em articulação com os governos, por meio de políticas monetárias de injeção de liquidez, inclusive fazendo aquisição de títulos públicos. Diante da compra de ativos financeiros, o balanço do banco central americano – FED, que tem mandato para conter a inflação e combater o desemprego, deve alcançar 42% do PIB. A expansão da base monetária tornou os juros americanos negativos, sem impactos sobre o nível de preços.
Nos países centrais, as políticas fiscal e monetária estão se articulando com vistas à recuperação das economias. No Brasil, o governo propõe insular ainda mais o Banco Central, defendendo sua autonomia em relação a governos eleitos e ao objetivo da recuperação econômica. Em 2020, O Banco Central, apesar de autorizado pelo Congresso, não realizou compras de títulos públicos para reduzir a inclinação da curva de juros, tendo em vista a elevação das taxas longas em função da incerteza típica de crises. O Presidente do Banco Central fez coro com as pressões de mercado e deu declarações em favor da retomada do teto de gastos como condição para não aumentar juros. Com a “autonomia”, o grau de descoordenação entre Banco Central e Tesouro tende a aumentar, restringindo a possibilidade de governos democraticamente eleitos implementarem políticas econômicas voltadas ao desenvolvimento do país.
O governo também quer aprovar projeto de lei que altera o mercado de câmbio. Não se trata apenas de desburocratização, mas de propor medidas de liberalização que tornarão a taxa de câmbio ainda mais volátil, o que tende a prejudicar investimentos produtivos. Por exemplo, o Banco Central regulamentará a abertura de contas em moeda estrangeira no Brasil para pessoas físicas e jurídicas. Em momentos de incerteza e aversão ao risco, os agentes poderão migrar do real para o dólar, especulando contra a moeda brasileira, o que levaria a depreciações, com eventual repasse aos preços.
O que essas agendas têm em comum? Junto ao teto de gasto, que afasta por até vinte anos a política fiscal das demandas por mais e melhores serviços públicos, elas retiram de forma estrutural instrumentos do Estado para que ele possa servir à maioria da população por meio de uma política econômica que garanta crescimento com geração de empregos e redução de desigualdade.
Em recente ato falho, o Ministério da Economia enunciou o projeto em suas redes sociais: é preciso tirar o Estado do povo brasileiro. É por esta razão que a base do governo na Câmara quer avançar na pauta neoliberal, em vez de garantir auxílio emergencial e mais recursos para o SUS e as demais políticas de combate à pandemia e recuperação econômica.
Gleisi Hoffmann é presidenta nacional do PT e deputada federal pelo Paraná
Artigo publicado originalmente no Jornal GGN