por Nilto Tatto
Em uma época em que a falta de acesso à água potável ameaça a vida de milhões de pessoas e gera conflitos no mundo todo, nos chama atenção a indiferença do governo Bolsonaro para o tema.
Na contramão da política que vêm adotando países no mundo todo, o atual governo federal pretende alterar o Marco Legal do Saneamento, facilitando a privatização de empresas públicas do segmento. Para se ter uma ideia, do ano 2000 para cá, foram registrados pelo menos 267 casos de “remunicipalização” ou “reestatização” dos serviços de água e esgoto no mundo, em cidades tão diversas como Berlin, Paris, Budapeste, Buenos Aires e La Paz.
Segundo um mapeamento feito por onze entidades majoritariamente europeias, a reversão vem sendo impulsionada por uma série de problemas reincidentes, como serviços inflacionados, ineficientes e com investimentos insuficientes. Em geral as cidades constataram que as privatizações ou Parcerias Público Privadas (PPP’s), não cumprem as promessas feitas inicialmente, operam com pouca transparência e praticam tarifas muito altas. A pergunta que fica no ar: a quem beneficiaria a proposta do governo brasileiro de ampliar por aqui um modelo esgotado em todo o mundo?
Importante frisar que, se for aprovada a proposta de privatização, a meta de universalização desses serviços seria simplesmente abandonada. Além disso, o controle de rios e lagos também passaria a ser exercido pelo capital transnacional, sem falar das ameaças às grandes reservas subterrâneas como os aquíferos Guarani, Grande Amazônia (uma extensão do aquíferos Alter do Chão) e Bauru.
Muito se especula sobre a exploração destes aquíferos por multinacionais. Embora não haja uma proposta concreta de utilização destes sistemas, é difícil imaginar que o volume de água envolvido não desperte o interesse de grandes companhias globais.
Segundo especialistas, o reservatório do Aquifero Guarani pode ter um volume de até 40 mil quilômetros cúbicos de água, quantidade equivalente a 16 bilhões de piscinas olímpicas. O Sistema Aquifero Grande Amazônia é ainda maior – descoberto por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade Federal do Ceará (UFC), o volume deste sistema seria o suficiente para abastecer a população atual do mundo por 250 anos.
Paralelamente, a intensificação do uso de agrotóxicos pelo agronegócio vem contaminando e asfixiando nossos corpos d’água. A grande influência do setor impede ainda ações de controle do uso intensivo dos recursos hídricos para irrigação, o que também ocorre em relação aos desmatamentos, que dispararam já no primeiro mês desse governo. A água é abundante onde há florestas e a supressão das matas resultaria fatalmente em escassez de água.
Temos que nos atentar ainda para a construção de barragens, especialmente àquelas destinadas à geração de energia hidrelétrica, que também alteram o curso e volume de rios, bem como a rotina de populações tradicionais, como ribeirinhos, quilombolas e indígenas. O Brasil poderia facilmente superar este modelo, já que tem enorme potencial de geração de energia solar e eólica, para citar apenas dois exemplos.
Sendo um recurso indispensável para a vida, não podemos permitir que nossa água seja explorada por empresas estrangeiras até que os reservatórios sejam esvaziados, quando ficaremos sem o recurso natural e os empregos gerados pela atividade que se encerrará tão logo “o poço fique seco”. Este é o modelo adotado por muitas multinacionais que já esgotaram fontes em vários países, inclusive nos Estados Unidos, bem como vem fazendo no sul do estado de Minas Gerais, no Brasil.
Precisamos adotar um modelo que não nos leve ao uso irresponsável dos recursos hídricos, poupando a nossa região de conflitos como os que ocorrem nas bacias do Nilo (norte da África); do Tigre e Eufrates (Oriente Médio); Planalto do Tibete (China) e Colinas de Golã (Israel, Síria e Jordânia). São regiões onde a água gera disputas inclusive militares.
O Brasil não pode, de maneira alguma, se dar ao luxo de adotar modelos fracassados, especialmente em um assunto tão delicado, do qual dependem nossas vidas. Precisamos preservar nossos mananciais, os cursos d’água, as bacias e aquíferos, de maneira que permita um uso equilibrado e a garantia de qualidade de vida para todos os brasileiros. Já temos conhecimento e tecnologia suficientes para desenvolver um modelo sustentável, o que falta ainda é vontade política.
Nilto Tatto – Deputado Federal – PT/SP. Coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista da Câmara Federal
Publicado originalmente no GGN