A Casa Grande e o STF – Emiliano José*

emilianojornalistaA Casa Grande não descansa. A ela não bastaram os quase 400 anos de escravidão. Não se conforma com as mudanças do mundo, não aceita que os negros sejam livres e muito menos que reclamem igualdade. Não se aquietou com a Lei Áurea, surgida como consequência da luta dos negros e de abolicionistas, levada a cabo durante o período colonial e intensificada durante o século XIX, sob o Império. E não se aquieta até os dias de hoje. Gostaria de ver os negros sempre em condição subalterna. Pudesse, a Casa Grande adoraria vê-los ainda como escravos. 

A decisão do STF, nos últimos dias, ratificando as políticas de ação afirmativa, de modo específico as cotas para negros nas universidades, evidencia um passo adiante na compreensão de um novo Brasil, a aceitação das novas políticas desenvolvidas a partir do governo Lula em relação aos negros, e uma derrota de grande magnitude do Partido da Casa Grande (PCG). Vamos nos entender: o PCG é amplo. Espraia-se por elites brancas bem situadas, promove tertúlias constantes, cheias de humor racista, e por vezes tenta até manobras de flanco teóricas com argumentos aparentemente progressistas.   

Mas, o PCG não quer enganar ninguém: só quer mostrar que é desenganadamente racista. Um de seus tentáculos mais coerentes tem sido o Partido Democratas (DEM). Forte, não se poderia dizer. Anda combalido, procurando, sofregamente, na escuridão, com uma lanterna na mão, à Diógenes, quase confundo com Demóstenes, como soerguer-se diante de tantas derrotas.

Mas, se não é forte, é de coerência exemplar quando se trata de racismo. Esse trunfo ninguém pode lhe negar, por injusto. Tanto que foi ao STF para tentar acabar com a política de cotas, indiscutível conquista dos negros, que tem trazido ganhos extraordinários para a juventude afrodescendente. Fosse um partido do Império, seguramente o DEM seria a vanguarda dos parlamentares que votaram contra a Lei Áurea, cujo conteúdo, causas e consequências não estão aqui em discussão pela exiguidade do espaço. Foram 83 deputados a favor, nove contra, na histórica sessão da Câmara Federal, de 13 de maio de 1888.

As cotas e as políticas afirmativas nada mais são do que medidas destinadas a corrigir a concentração de renda e de conhecimento, a diminuir progressivamente o fosso que separa os negros do restante da sociedade brasileira. A Casa Grande e seu partido não gostam de ouvir isso. Querem os negros em seu “devido lugar”, sempre com os piores salários, suportando os maiores índices de desemprego, enfrentando sempre o preconceito cotidiano, a violência policial, mão de obra barata à disposição da sociedade branca, sempre distante do conhecimento letrado. O DEM sabia o que queria quando foi ao STF. Ele expressa com clareza o pensamento escravocrata atual no Brasil.

Como ocorreu nos períodos colonial e imperial, as conquistas atuais dos negros são consequência da luta. Os afrodescendentes vem crescendo em sua consciência e organização. A isso se somou um novo projeto político, iniciado com o governo Lula, em 2003, que assimilou muitas das bandeiras do movimento negro. São enormes as conquistas já obtidas, como é gigantesca, ainda, a caminhada a percorrer para chegarmos a uma sociedade que supere a desigualdade, que faça um encontro verdadeiro entre todas as culturas do povo brasileiro. As cotas são parte dessa caminhada, reafirmadas agora pelo STF.

A decisão que consagra as cotas, 124 anos depois da Lei Áurea, é um passo importante na direção da reparação dos crimes cometidos na longa noite da escravidão no Brasil, último país das Américas a acabar com essa ignomínia. A democracia, no Brasil, reclama a igualdade em sentido amplo, e particularmente entre negros e o restante da sociedade. Em 1946, na Convenção Nacional do Negro Brasileiro, foi feita a primeira apresentação formal de ações afirmativas, há coisa de 66 anos. O STF, com tal decisão, mostra-se contemporâneo do nosso tempo, e dá uma segura resposta às pretensões conservadoras do DEM e do PCG. A democracia caminha, apesar do racismo e do obscurantismo ainda presentes entre nós. A luta continua. A história não acabou.

*Artigo publicado originalmente no jornal A Tarde desta segunda-feira, 07.05.

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