A corrupção e o Estado de Direito

Em artigo, o ex-ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, defende o combate à corrupção. “ ….a apropriação privada do dinheiro público deve ser sempre combatida com vigor, em especial por aqueles que desejam a transformação de uma sociedade, na perspectiva da superação de quaisquer formas de exclusão social …. Se a corrupção é motivada pela busca do enriquecimento pessoal, não se pode ter qualquer dúvida de que estaremos diante de um comportamento eticamente repugnante e execrável. Se ela se verifica em decorrência de projetos políticos de conquista do poder, também deve ser duramente recriminada, independentemente da perspectiva política ou ideológica…”, diz o texto.

Cardozo observa também que devemos ser “absolutamente intolerantes com o abuso do poder, não importando a razão em que o arbítrio e a ofensa do Estado Democrático de Direito se configure. Venham de juízes, de membros do Ministério Público, de Delegados de polícia, de Parlamentares ou de quaisquer agentes públicos, da mesma forma que a corrupção, os atos de violência a direitos e a garantias constitucionais, o arbítrio e o abuso de poder devem ser igualmente execrados e combatidos”.

Leia a íntegra:

A Corrupção e o Estado de Direito

Nada justifica a corrupção ou a inércia em combatê-la. Por mais que o Estado seja uma forma de organização do exercício do poder político intrinsecamente vinculada à existência de classes sociais, nas sociedades capitalistas modernas, o desvio de dinheiro público implica, inevitavelmente, no aumento da exclusão social. Menor quantificação de dinheiro público disponível significará sempre, de forma proporcional, uma menor quantidade ou uma pior qualidade na prestação de serviços públicos. E a razão é óbvia: pobres e excluídos, normalmente,  necessitam mais da prestação de serviços públicos do que ricos e incluídos.

Por isso, podemos afirmar que a apropriação privada do dinheiro público deve ser sempre combatida com vigor, em especial por aqueles que desejam a transformação de uma sociedade, na perspectiva da superação de quaisquer formas de exclusão social e do aprofundamento democrático. Pouco importa a razão pela qual recursos foram ou são desviados dos cofres públicos. Se a corrupção é motivada pela busca do enriquecimento pessoal, não se pode ter qualquer dúvida de que estaremos diante de um comportamento eticamente repugnante e execrável. Se ela se verifica em decorrência de projetos políticos de conquista do poder, também deve ser duramente recriminada, independentemente da perspectiva política ou ideológica em nome da qual é realizada.

Subtrair recursos dos serviços de saúde, da educação, da reforma agrária, de projetos sociais, ou de quaisquer outras áreas da atuação estatal, sob o pretexto de que a apropriação se dá em favor da luta para a construção de uma nova sociedade, qualifica um agir messiânico ou um autoritarismo que são absolutamente incompatíveis com a real conquista deste mesmo objetivo. Ninguém que se propõe a construir uma sociedade verdadeiramente democrática pode pretender capturar para a sua ação política a “virtude absoluta” ou ser dono de uma “verdade incontestável”. Ninguém pode atribuir ao caminho político “revolucionário” que segue, a condição imperial e intocável de ser a única via redentora de todos os males. Messianismo e autoritarismo não se coadunam com a construção de uma sociedade autenticamente justa, democrática, igualitária, fraterna e humanista.

Por isso, o combate à corrupção não pode ser apenas visto como uma tática retórica momentânea utilizada para o enfrentamento de adversários políticos ou ideológicos. Ele deve sempre ser tido como um compromisso ético permanente, indispensável para a construção de uma nova sociedade, de uma nova cultura humanista, em que o público e o privado não se confundam, o autoritarismo não prevaleça sobre a pluralidade de ideias, o exercício do poder político se dê a partir de parâmetros democráticos reais e não meramente formais, e a igualdade entre todos não seja apenas um fim a ser alcançado em um ponto futuro da história, mas um meio que precisa ser afirmado sempre, a cada nascer do dia e a cada por do sol.

Combater ou não ser conivente com a corrupção, nessa perspectiva, ao contrário do que alguns sugerem, não é compactuar com um moralismo udenista hipócrita e retórico, ou estar motivado por um republicanismo excessivo de origem pequeno burguesa. É uma postura radicalizada e verdadeiramente transformadora, tanto do ponto de vista da formulação de novas relações de poder, como da construção de uma nova cultura política.

Ao afirmarmos isso, porém, não estamos defendendo que o combate à corrupção deva se dar sem quaisquer limites. Se a corrupção não se torna legítima pela equivocada premissa de que “os fins justificam os meios”, o seu combate também não pode adotá-la, pouco importando, também aqui, os pretextos utilizados para tanto. A presença de “justiceiros” nunca fez bem à humanidade.

O modelo de exercício do poder político que se convencionou chamar de “Estado de Direito” (Rechtstaat) foi consolidado historicamente a partir do século XVIII, em atendimento às necessidades econômicas, sociais e jurídicas impostas pela nascente sociedade capitalista. Comportou, nos marcos desta sociedade, variações substantivas que agasalharam o “Estado liberal” e o “Estado Social”. Isso, porém, não significa que o “Estado de Direito” não apresente avanços importantes que devam ser reconhecidos e defendidos inclusive por aqueles que desejam a construção de um novo tipo de sociedade, em que se supere o modo de produção capitalista. Um Estado de Direito radicalizado na sua dimensão democrática, no qual fiquem assegurados direitos e valores humanistas, deve ser visto hoje como uma etapa evolutiva importante a ser conquistada.

Não podemos aceitar, por isso, que a pretexto de se combater a corrupção e seus efeitos perversos, se violente o Estado Democrático de Direito, ignorando-se garantias, direitos e princípios constitucionais. Se o combate à corrupção é virtuoso, o respeito às regras constitucionais que garantem a aplicação deste modo de exercício do poder político deve também ser visto como virtuoso. A imposição exacerbada e autoritária de uma “virtude” frequentemente implica no aniquilamento de outras “virtudes” igualmente relevantes. É correta a percepção de Montesquieu de que até a “virtude” precisa de limites, para que o exercício do poder possa ser efetivamente limitado, e dele não decorram abusos de qualquer natureza.

Cumpre, assim, que se combata a corrupção com coragem e ousadia. Mas que sejamos também absolutamente intolerantes com o abuso do poder, não importando a razão em que o arbítrio e a ofensa do Estado Democrático de Direito se configure. Venham de juízes, de membros do Ministério Público, de Delegados de polícia, de Parlamentares ou de quaisquer agentes públicos, da mesma forma que a corrupção, os atos de violência a direitos e a garantias constitucionais, o arbítrio e o abuso de poder devem ser igualmente execrados e combatidos.

 

*Por José Eduardo Cardozo, advogado e professor de Direito da PUC/SP e do UniCEUB/DF, ex-Ministro de Estado da Justiça e Ex-Advogado Geral da União

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