Precisamos repactuar nossa democracia

Em artigo, o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), analisa o momento em que vivemos e que está colocando em risco nossos pactos democráticos mais básicos. “Está havendo uma comunhão perversa entre os que romperam com o pacto de 1988 e um Estado que só tem entregado anulação de direitos, repressão e violência. São presos temporários sem prazo e sem julgamento, são manifestantes nos centros urbanos que terminam em hospitais em coma ou gravemente feridos, são conflitos rurais que perderam a mediação e acumulam mortos, e são indígenas decapitados e mutilados”.

Leia a íntegra:

Precisamos repactuar nossa democracia

 

Regimes democráticos pressupõem um ambiente social plural e uma estrutura legal que garanta a liberdade de expressão e manifestação. Isto não significa, porém, que nesses regimes possa prevalecer o vale tudo sem limites. Viver em democracia é também firmar pactos em relação a certos princípios e valores, sejam eles definidos pela lei, sejam eles vivenciados no plano mais ordinário de nosso dia a dia.

Ao deixarmos para trás mais de 20 anos de ditadura militar, a sociedade brasileira firmou um pacto traduzido pela Constituição de 1988 e iniciou um novo ciclo de pactos sociais alinhavados pelo desejo de viver a democracia construindo uma nova cidadania e rompendo as barreiras das desigualdades sociais e regionais. As últimas décadas foram marcadas por esses compromissos, e, mesmo que reconheçamos os desafios que ainda temos pela frente, é impossível negar que avançamos muito nessa direção.

O momento que vivemos, entretanto, ameaça nossos pactos democráticos mais básicos. Num contexto em que uma presidenta legitimamente eleita é alijada da presidência ao arrepio da Constituição e como produto de uma chantagem rasteira de um conjunto de atores interessados única e exclusivamente em “estancar a sangria”, nossas bases institucionais começam a erodir.

Rupturas institucionais geram cada vez mais estímulos para outras rupturas. Tão grave são as ameaças aos pactos sociais que conseguimos carregar até aqui. Desde a redemocratização nunca houve momento político em que tantos grupos se colocaram à disposição dos discursos que minam as capacidades estatais para a promoção de políticas sociais e, ainda mais grave, tantos outros que vocalizam agendas autoritárias, xenófobas, racistas e misóginas.

Na noite do dia 02 de maio um grupo de manifestantes vociferava na Avenida Paulista, em São Paulo, contra a recém-aprovada Lei de Migração focando, principalmente, nos islâmicos que por aqui já chegaram ou que podem chegar ao Brasil. O discurso de ódio religioso e de xenofobia provocou a reação de um grupo de palestinos e sírios que passava pelo local.

O saldo foi a prisão dos imigrantes sob os gritos eufóricos dos manifestantes: “Viva a PM!”. Na manifestação contra os imigrantes, os imigrantes é que foram presos. Não bastasse isso, na delegacia só puderam ser atendidos pelos advogados depois de cinco horas sob a vigilância ostensiva da polícia civil. Um deles, inclusive, bastante machucado.

Fosse esse um acontecimento pontual, poderíamos refletir sobre como construir bases mais adequadas para avançarmos com os desafios dos novos fluxos migratórios. Mas esse não é o caso. Há uma sequência de acontecimentos a retratar as erosões de nossos pactos democráticos mais básicos e de algumas de nossas instituições. Está havendo uma comunhão perversa entre os que romperam com o pacto de 1988 e um Estado que só tem entregado anulação de direitos, repressão e violência. São presos temporários sem prazo e sem julgamento, são manifestantes nos centros urbanos que terminam em hospitais em coma ou gravemente feridos, são conflitos rurais que perderam a mediação e acumulam mortos, e são indígenas decapitados e mutilados.

Não são as esquerdas que estão sendo desafiadas a se repensar e a repactuar sua agenda. Nosso desafio é ainda maior do que esse. Precisamos repactuar nossa democracia e resgatar nossas capacidades estatais. O que emergiu nos últimos anos dificilmente servirá de substrato para esse processo. Que nos sirva ao menos para nos alertar sobre que tipo de sociedade não queremos ser e que funcione como combustível para ativarmos nossas redes e fortalecermos nossos pactos.

*Paulo Teixeira é advogado e deputado federal pelo PT-SP

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