Enquanto “prosperidade” é a palavra síntese dos dois primeiros mandatos presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva, “destruição” é a principal marca do desgoverno de Jair Bolsonaro. Em todos os setores, mas particularmente na área socioeconômica, o retrocesso desses quatro anos de gestão lesa-pátria deixou as famílias brasileiras mais pobres, mais endividadas e fez o Brasil retornar ao Mapa da Fome das Nações Unidas.
Mas se a população, especialmente a parcela mais vulnerável, viu sua qualidade de vida se deteriorar nos últimos quatro anos, o mesmo não se pode dizer do mercado financeiro. Este surfou na onda de benesses cedidas pelo ministro-banqueiro Paulo Guedes, a quem Bolsonaro entregou um superministério e a chave do cofre.
Agora, setores do mercado financeiro se apressam em contestar as primeiras propostas em estudo no Gabinete de Transição de um governo que sequer tomou posse, como se a condução econômica das duas primeiras gestões de Lula não tivesse sido exemplar. Uma reação que o analista econômico José Paulo Kupfer considerou motivada por dois fatores: “Primeiro, arrogância, depois, burrice”, criticou ele em sua coluna no Poder 360.
Guedes, que copiou o chefe e passou semanas desaparecido do noticiário, resolveu dar as caras na última sexta-feira (18), para mais uma vez brigar com os fatos e mandar a chapa vencedora nas eleições “calar a boca”. Nas redes sociais, a presidenta nacional do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PR), respondeu à altura.
“Cala boca já morreu, Guedes”, afirmou Gleisi em seu perfil no Twitter. “Teto estourou em 800 bilhões, PIB é 129º no ranking mundial, investimento 27,3% abaixo do resto do planeta, maior inflação em 27 anos, queda na renda, emprego precário e volta da fome. Seu tempo acabou, vai pra casa.”
Cala boca já morreu, Guedes. Teto estourou em 800 bilhões, PIB é 129o no ranking mundial, investimento 27,3% abaixo do resto planeta, maior inflação em 27 anos, queda na renda, emprego precário e volta da fome. Seu tempo acabou, vai pra casa.
— Gleisi Hoffmann (@gleisi) November 18, 2022
Bolsonaro e Guedes voltarão para casa deixando para trás uma “herança maldita” de degradação institucional, dilapidação das empresas estatais e desmonte de políticas públicas que geraram prosperidade e justiça social durante os governos do PT. Veja a seguir alguns pontos do “legado” dos últimos quatro lamentáveis anos.
Teto de gastos
A regra de teto de gastos ditada pela Emenda Constitucional 95 de 2017, a “emenda da morte”, foi usada pelo desgoverno Bolsonaro para desidratar os investimentos sociais e burlada quando era conveniente. A flexibilização começou já em 2019, explodiu em 2020, com a pandemia, e se expandiu em 2022, com o pacote eleitoreiro.
Levantamento do economista Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE), para a BBC News Brasil, revela que os gastos do desgoverno Bolsonaro acima do teto somam R$ 794,9 bilhões de 2019 a 2022. Foram R$ 53,6 bilhões em 2019, R$ 507,9 bilhões em 2020, R$ 117,2 bilhões em 2021 e serão R$ 116,2 bilhões neste ano.
Esse valor representa a soma de autorizações que a atual gestão obteve no Congresso para gastar acima do limite constitucional e outras manobras que driblaram o teto, como o adiamento do pagamento de precatórios (dívidas do governo reconhecidas judicialmente) e a mudança do cálculo para definir o teto em 2022.
Queda do PIB
Nos dois governos de Lula, o Brasil teve média de crescimento do produto interno bruto (PIB) de 4,1%, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mesmo período, a média de crescimento do mundo foi de 2,7%, aponta o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Já o desgoverno Bolsonaro teve crescimento médio do PIB de 0,6% em seus três primeiros anos. A previsão do PIB em 2022 é de 2,80%, conforme o Boletim Focus, divulgado nesta segunda-feira (28) pelo Banco Central. Incluindo essa estimativa, a média anual de elevação da economia do governo Bolsonaro ficará em torno de 1,2%. Entre 2019 e 2022, os demais países do mundo cresceram 1,9% (FMI).
Quando Lula assumiu o governo, o Brasil era a 13ª maior economia do mundo. Ao término de sua gestão, o país estava na 7ª colocação, estima o FMI. A trajetória foi inversa no mandato de Bolsonaro: o Brasil caiu da 9ª para a 13ª posição.
Queda dos investimentos
A taxa de investimentos no Brasil segue há anos em patamar baixo e deve ficar menor que a de 82% dos países em 2022, segundo um levantamento do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV). O estudo mostra que 139 de um total de 170 países devem apresentar um nível de investimento em proporção ao PIB maior do que o Brasil neste ano.
A taxa de investimento prevista para o Brasil em 2022 é de 18,4% do PIB, contra 19,2% em 2021. Já a taxa de investimento média no mundo no ano é projetada em 27,3% para a lista de 170 países, o que representaria um avanço ante os 26,7% do ano passado.
Os investimentos públicos também atingem pisos históricos. Dados do Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV revelam que a taxa de investimentos brutos do setor público (União, estados, municípios e estatais federais) em 2021 foi a segunda pior da série histórica da instituição, iniciada em 1947. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023 prevê R$ 22,4 bilhões, valor 50,4% menor do que o autorizado este ano.
Inflação e dívida pública
O primeiro ano de Lula no poder (2003) registrou inflação de 12,53%. O último ano (2010) fechou com a taxa em 5,91%. Por sua vez, Bolsonaro teve inflação de 3,75% em 2019. Dois anos depois, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) fechou 2021 em 10,06%, maior alta desde 2015.
A redução de tributos e a pressão sobre a Petrobrás no período eleitoral fizeram cair o preço dos combustíveis e a inflação a partir de julho. Mas já entre o primeiro e o segundo turno, o IPCA de outubro subiu 0,59%, fazendo a “deflação” pontual e artificial ocorrida de julho a setembro se esvair. O indicador acumula alta de 4,70% no ano e de 6,47% nos últimos 12 meses.
Com relação à dívida pública em relação ao PIB, Lula a reduziu de 59,9% em 2002 para 38% em 2010. No governo Bolsonaro, ela cresceu. Em 2018, era de 52,8%, e está em 58,2% agora, segundo o Banco Central.
Endividamento das pessoas
Em setembro, aponta a Serasa, o número de inadimplentes subiu pelo nono mês consecutivo, para 68,39 milhões. Em janeiro, eram 64,81 milhões, e em agosto, 67,97 milhões. O percentual de dívidas com mais de um ano de atraso cresceu pelo segundo ano consecutivo, saindo de 67%, em 2021, para 71% em 2022. Índice maior que o de antes da pandemia: eram 68% em 2019.
Além disso, o endividamento generalizado das famílias atinge com mais força as mais pobres. Elas também concentram as taxas mais altas de inadimplência, aponta a ‘Carta do Ibre’ deste mês.
Dos quase R$ 3 trilhões da carteira de crédito à pessoa física em julho deste ano, a faixa de alta renda concentrava quase metade (49%), enquanto 19% estavam na baixa renda. Mas os mais pobres respondiam por 37% do volume da carteira inadimplente, enquanto os de renda mais alta, por 24%.
Desemprego e informalização
Em dezembro de 2002, antes de Lula tomar posse, a taxa de desemprego estava em 10,5%, conforme a Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do IBGE. Ao fim do segundo mandato, em dezembro de 2010, o índice havia caído para 5,3%. Em oito anos, o número de empregados formais subiu de 28,7 milhões no fim de 2002 para 44,1 milhões ao término de 2010. O rendimento mensal médio cresceu 19%.
Antes de Bolsonaro assumir, em dezembro de 2018, a taxa de desemprego era de 11,7%. O índice chegou a 14,9% durante a epidemia. O novo indicador do IBGE (Pnad Contínua) chegou a 8,7% no trimestre encerrado em setembro.
O número de empregos formais caiu no desgoverno Bolsonaro. Foi de 46,6 milhões, no fim de 2018, para 42,8 milhões em setembro de 2022. A renda média foi de R$ 2.737 no trimestre encerrado em setembro. Valor inferior ao do começo do desgoverno Bolsonaro, que era de R$ 2.819 em março de 2019, em valores atualizados.
Salário mínimo congelado
Em seu primeiro mandato, Lula criou a regra de reajustar o salário mínimo anualmente pela inflação (Índice Nacional de Preços ao Consumidor, que mede a variação de preços das famílias que recebem até cinco salários mínimos) e pelo PIB do ano anterior ao último. A prática virou lei em 2011, no governo Dilma Rousseff. Com isso, o salário mínimo teve aumento real de 62,8% nos oito anos de Governo Lula.
Bolsonaro quebrou a regra. Dessa maneira, o valor real do rendimento caiu 1,2% desde 2019, conforme dados do Ministério do Trabalho e do IBGE. Se Bolsonaro fosse reeleito, Guedes pretendia desvincular o salário mínimo e benefícios previdenciários da inflação. Se tal prática estivesse em vigor desde 2003, o valor do piso seria de R$ 699.
O poder de compra do salário mínimo subiu 46% nos anos Lula. Ao assumir o Executivo, o rendimento dava para adquirir cerca de 1,6 cesta básica. Em 2011, já era suficiente para comprar 2,4 delas, revela o Departamento Intersindical de Estatísticas Socioeconômicos (Dieese). Quando Bolsonaro assumiu, o salário mínimo equivalia a 2,5 cestas básicas. Hoje, só consegue comprar 1,8. Queda de 26%.
Pobreza e desigualdade
A taxa de pobreza nos anos Lula, medida em relação à população total, foi de 26,7% em 2002 para 12,4% no fim de 2010. No desgoverno Bolsonaro, o percentual de pobres aumentou de 10,4%, no fim de 2018, para 13,8% em 2021, segundo dados da FGV Social Notas.
A desigualdade social foi reduzida durante a gestão de Lula. O coeficiente de Gini foi de 0,587, em 2002, para 0,531, em 2011. Quanto mais alto, mais desigual é o país. Bolsonaro, por sua vez, assumiu o país com o índice em 0,545, em 2018, e ele estava em 0,544, no fim de 2021.
Cortes generalizados de investimentos sociais
A proposta do desgoverno Bolsonaro para o Orçamento da União/2023, enviada ao Congresso (PLN 32/2022), traz cortes de quase 15% nas despesas e investimentos. Saúde, educação, assistência social e segurança pública foram os setores mais prejudicados.
Pela previsão, o Auxílio Brasil seria de apenas R$400,00, ao contrário dos R$600,00 prometidos. A tabela do imposto de renda não teria reajuste. A regra do teto de gastos asfixiou a capacidade de investimento público. O orçamento para despesas não obrigatórias de 2023 é R$ 63 bilhões menor do que o de 2016.
A proposta de emenda à Constituição (PEC) do Bolsa Família, apresentada na última quarta-feira (16), vai recompor os valores. Além dos R$ 600 como valor base do Bolsa Família, a PEC também deixa de fora da regra o teto de gasto o valor extra de R$ 150 mensais a ser pago a pais beneficiários com filhos de até 6 anos de idade.
33 milhões passando fome
Além da pobreza e da desigualdade, com Bolsonaro a fome foi outro drama social que voltou a assombrar contingente maior de brasileiros. A combinação de maior pobreza e explosão dos preços dos alimentos fez o espectro da fome alcançar novos recordes. Pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) indicou a existência de 33 milhões de brasileiros vivendo em situação de fome.
Em 2018, 10,3 milhões de pessoas não tinham o que comer. Em abril de 2020, ainda no início da pandemia, já eram 19 milhões. De lá para cá, 23 milhões entraram na estatística vergonhosa da falta de comida.
PTNacional, com informações do Conjur