No primeiro dia de reunião deliberativa da Comissão Especial do Voto Impresso (PEC 135/2019), o plenário aprovou cinco requerimentos de audiência pública apresentados pelos deputados petistas no colegiado: Arlindo Chinaglia (SP), Carlos Veras (PE) e Odair Cunha (MG). Pelas propostas, serão ouvidos especialistas no funcionamento de urnas eletrônicas e autoridades em direito eleitoral do país.
Em reuniões separadas, serão convidados o técnico do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) responsável pela implantação da urna eletrônica, Giuseppe Janino; o técnico do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) responsável pelo desenvolvimento e implantação da urna eletrônica, Paulo Nakaya; e o especialista em auditoria, consultoria e perícia contábil Roger Maciel.
Também participarão das audiências públicas o ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na época da implantação da urna eletrônica, Jose Neri da Silveira, e o especialista em direito eleitoral Angelo Soares.
A comissão foi instalada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), em sessão na madrugada da última quinta-feira (13), dia em que a urna eletrônica completou 25 anos de existência. Lira cumpriu assim um compromisso da campanha ao cargo, em troca do apoio de Jair Bolsonaro à sua postulação.
A PEC, de autoria de Bia Kicis (PSL-DF), prevê a inclusão de um artigo na Constituição para que, “na votação e apuração de eleições, plebiscitos e referendos, seja obrigatória a expedição de cédulas físicas, conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”.
Bolsonaro retribuiu chamando Lira e Kicis de “pais do voto impresso”. O tema tornou-se palavra de ordem nas recentes manifestações de seus apoiadores, entre pedidos por intervenção militar e pelo fim das medidas de restrição social impostas pela pandemia.
“Se o Parlamento brasileiro, por maioria qualificada, por 3/5 da Câmara e no Senado, aprovar e promulgar, vai ter voto impresso em 2022 e ponto final. Porque se não tiver voto impresso é sinal de que não vai ter eleição, acho que o recado está dado”, disse Bolsonaro em sua live, na noite posterior à instalação do colegiado.
Barrroso: “proposta é retrocesso”
Algumas horas após Arthur Lyra instalar a comissão do voto impresso, Luís Roberto Barros, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), disse que a proposta seria um “retrocesso” capaz de provocar a judicialização” das eleições. A declaração foi dada durante entrevista coletiva convocada para lançar a campanha institucional do tribunal sobre a segurança, a transparência e a auditabilidade do voto eletrônico.
“Temos muitos problemas no país: o Real é a moeda que mais desvalorizou, a pandemia trouxe números recordes de mortos, 40% do Pantanal queimou, a situação da Amazônia nos cria embaraços em todo o mundo civilizado, o PIB caiu 4%, os investidores estrangeiros foram embora”, enumerou o ministro.
“Se tem uma coisa que funciona é a urna eleitoral e o processo eleitoral. Em 2020, realizamos, no período da pandemia, eleições com segurança, divulgamos o resultado no mesmo dia, não há nenhuma comprovação razoável de fraude. Vamos mexer no que está funcionando?”, indagou Barroso.
“Seria inútil relativamente ao discurso da fraude, porque esse é um discurso político. Nos Estados Unidos, havia voto impresso. Boa parte das pessoas que defendem voto impresso no Brasil afirmou que houve fraude nas eleições americanas, portanto, ficaríamos no mesmo lugar. Vai ser um custo, um risco e uma inutilidade, porque eles vão continuar achando a mesma coisa”, argumentou.
“As urnas serviram para terminar com um passado de fraudes eleitorais que marcavam o processo democrático brasileiro, desde a República Velha, manchada pelo coronelismo, pelos votos de cabresto e pela chamada eleição ‘bico de pena’: quando as urnas não correspondiam ao que os dominantes queriam, os resultados eram adulterados na hora do lançamento do mapa da votação”, concluiu Barroso.
Na rede social TikTok, o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) publicou vídeo em que debocha de quem “defende o voto impresso em pleno século XXI” (https://www.tiktok.com/@tre_pr/video/6962939181303647493?lang=pt-BR&is_copy_url=1&is_from_webapp=v1). O TRE/PR e as zonas eleitorais de Curitiba foram os pioneiros na implantação do voto eletrônico, em 1996.
Aécio Neves também atacou voto eletrônico
A cantilena bolsonarista contra o voto eletrônico não é novidade. Em 2014, após Dilma Rousseff ser reeleita, o candidato derrotado Aécio Neves pediu a recontagem dos votos, mesmo após todo o processo de verificação do pleito conduzido pelo TSE. A empresa de auditoria independente contratada pelo PSDB apresentou relatório ao tribunal atestando não ter encontrado fraude no resultado. Aécio jamais admitiu a derrota.
Em 2015, o Congresso Nacional aprovou, dentro da minirreforma eleitoral, dispositivo que previa a impressão do voto. Dilma vetou o trecho, mas a decisão foi derrubada pelos parlamentares e o governo promulgou a lei determinando a impressão do voto. Houve recurso da Procuradoria-Geral da República e, em junho de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou a medida de forma liminar. Em setembro de 2020, a Corte confirmou a decisão, e o trecho que previa a impressão foi declarado inconstitucional.
As urnas eletrônicas passam por várias etapas de auditoria. A própria criação dos equipamentos foi um processo descentralizado, com participação de universidades federais, institutos de tecnologia, Exército e Forças Armadas, entre outros órgãos.
As auditorias garantem a transparência do processo eleitoral e são abertas à participação da sociedade. A lacração dos sistemas, por exemplo, é acompanhada por representantes dos partidos políticos, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério Público Eleitoral (MPE) e Congresso Nacional, entre outras instituições. Outras fases podem ser acompanhadas por qualquer pessoa, como a Auditoria de Funcionamento das Urnas Eletrônicas. A cerimônia é fiscalizada por uma empresa privada de auditoria.
Mas o voto impresso ainda é uma realidade, prevista pelos artigos 82 a 89 da Lei 9.504/1997 e pela Lei 4.737/1965. Nos dias de eleição, as cédulas em papel ficam disponíveis caso a seção eleitoral, em situação de contingência, tenha que passar do sistema eletrônico para o manual. O voto impresso também é utilizado por pessoas que moram no exterior nas eleições para presidente e vice-presidente da República.
Bolsonaro copia estratégia fracassada de Trump
Ouvidos pelo ‘Correio Braziliense’, especialistas avaliam que o ataque bolsonarista às urnas eletrônicas constitui uma estratégia para tumultuar a disputa de 2022. O sociólogo Elimar Pinheiro, professor da Universidade de Brasília (UnB), compara a ação à volta do coronelismo, fenômeno arraigado na cultura política nacional. “Quando fui fiscal eleitoral, anotei sete formas de ludibriar o resultado da eleição com o voto impresso.”
Outro ponto a considerar, diz Pinheiro, é a narrativa golpista. “Bolsonaro está construindo um discurso para contestar sua eventual derrota nas urnas, como Trump. Nos Estados Unidos, isso fracassou porque não teve apoio dos militares. Aqui, Bolsonaro encheu o governo de militares e não perde uma formatura ou qualquer outra solenidade militar, para ter apoio armado da tropa, independentemente da posição dos generais.”
No ano passado, Donald Trump abusou da retórica conspiratória contra o sistema de votos do país meses antes das eleições em que tentou o segundo mandato. Já durante as apurações, grandes redes de televisão aberta chegaram a interromper a transmissão de um pronunciamento na Casa Branca em que Trump garantia: “Se você contar os votos legais, eu ganho facilmente”, enquanto os votos ainda estavam sendo contados.
A cruzada de Trump para não reconhecer a vitória do adversário culminou com a invasão do Congresso dos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, durante a sessão conjunta para confirmação dos votos do colégio eleitoral. Trump convocou os apoiadores a marcharem pela capital Washington e disse que não concederia a vitória a Biden. E jogou a responsabilidade no colo dos legisladores.
No auge do episódio, manifestantes armados forçaram a entrada no Capitólio, enquanto senadores e representantes da Câmara eram retirados às pressas. Como saldo, a polícia confirmou quatro mortes e 52 prisões. Horas depois, Trump divulgou um vídeo repetindo que as eleições foram roubadas.
Estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV), com cooperação do TSE, mapeou e analisou postagens que questionam a integridade do processo eleitoral desde 2014 no Facebook e no YouTube. O recorde ocorreu em 2018, com 32.586 posts e vídeos sobre desconfiança no sistema eleitoral. Em 2020, em apenas nove meses, foram 18.345, superando 2014, ano de eleição presidencial.
Segundo Thiago Rondon, coordenador digital de combate à desinformação do TSE, “há uma altíssima probabilidade de que o que ocorreu nas eleições norte-americanas, de tentativa generalizada de desacreditar o sistema eleitoral, vá se repetir no Brasil em 2022, se não nos prepararmos de forma adequada”.
“Bolsonaro tenta semear uma narrativa de descrença no processo eleitoral brasileiro, na qual assume o papel de vítima”, avaliou o especialista em política norte-americana, professor da Fundação Dom Cabral e analista de risco da Dharma Politics, Creomar De Souza. “Mas o sistema eleitoral brasileiro é mais sofisticado e confiável do que o dos Estados Unidos”, conclui.
Redação da Agência PT