Saneamento
A menos que os ganhos com a privatização sejam colossais, a variável de ajuste para expandir os serviços será a tarifa.
Não sou dogmático em relação a parcerias privadas. Eu e Ana Estela elaboramos uma das mais bem-sucedidas parcerias público-privadas da história, o Prouni, que já beneficiou mais de dois milhões de jovens de baixa renda. Chefiei também a equipe que elaborou a lei geral das PPPs.
Os dois projetos sofreram oposição de setores da direita e da esquerda. O PFL (atual DEM) chegou a entrar com uma Adin junto ao STF contra o Prouni. Os procuradores do MEC eram simpáticos à tese do PFL, o que me obrigou, com o apoio do meu chefe de gabinete, a definir a vencedora estratégia de defesa.
O governo Lula foi também responsável pela maior expansão da história da rede federal de universidades, demonstrando que esforços públicos e privados podem se reforçar mutuamente.
Dito isso, passo a tecer considerações sobre a nova lei regulatória de saneamento.
Ao contrário do que se diz, a lei não “autoriza” a privatização do serviço, seja por concessão ou PPP. Na verdade, a nova lei, pela combinação de fatores como acesso a crédito, regulação federalizada e fim dos contratos de programa, praticamente “obriga” a privatizar, especialmente as empresas estaduais de saneamento, a maioria das quais criadas durante a ditadura militar.
É esse o aspecto que os que votaram a favor do projeto relutam em admitir, embora todos os inúmeros detalhes do novo marco imponham essa conclusão.
Conhecemos a cantilena: as empresas públicas são ineficientes; a empresa privada, ainda que busque o lucro, graças a sua competência, diminuirá custos a ponto de baixar a tarifa média, universalizar o serviço e remunerar adequadamente os acionistas.
Pois bem. O saneamento é um serviço público como outro (energia, telefonia, transporte), mas tem suas especificidades. O custo da captação de água, na margem, é cada vez maior, e a renda média dos novos usuários é cada vez menor. Não parece grande a disposição de prefeitos e governadores de subsidiar com recursos do Tesouro a universalização do serviço. O governo federal tampouco prevê a criação de um fundo nacional de universalização nos moldes de outros serviços públicos.
A menos que os ganhos de produtividade com a privatização sejam verdadeiramente colossais, a variável de ajuste para expandir os serviços será a tarifa, pressionada pela necessidade de ampliação dos investimentos, de um lado, e de eventual aumento do subsídio cruzado, de outro.
Minha aposta, hoje, é a de que, tudo dando certo, podemos até ter algum incremento do atendimento, mas à custa de um choque tarifário que será suportado prioritariamente pelas classes médias. A ver.
Fernando Haddad é ex-prefeito de São Paulo, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e foi candidato a presidente da República pelo PT em 2018.
Artigo publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo (26/06/2020)