Quando o “ouvi dizer” é tratado como prova

Três professores de direito constitucional de Pernambuco se uniram para assinar um dos artigos do livro “Comentário a uma sentença anunciada – o processo Lula”. Eles denunciam que qualquer “disse-me-disse” ganhou status de prova no julgamento de primeira instância.

João Paulo Allain Teixeira é professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco e Filosofia do Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Mestre (UFPE, Universidad Internacional de Andalucía) e Doutor (UFPE) em Direito.

Gustavo Ferreira Santos é professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal de Pernambuco (licenciado) Mestre (UFSC) e Doutor (UFPE) em Direito, Pós-Doutorado na Universidade de Valência. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Procurador do Município do Recife.

Marcelo Labanca Corrêa de Araújo é professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco. Mestre e Doutor em Direito (UFPE). Pós-Doutorado na Universidade de Pisa. Procurador do Banco Central.

Eles afirmam:

— Boatos ouvidos pelas testemunhas também viraram provas. Na sentença é destacado do depoimento de Rosivane Soares que era “afirmação comum” no condomínio e na região que o apartamento era do presidente Lula. Disse a testemunha, respondendo se ouvirá falar de quem era o apartamento: “Sim, a maioria dos moradores do condomínio, os comércios na região, eu achei até surpresa quando eu comecei a trabalhar lá, que eu não sabia dessa informação, e eu fui informada, até a primeira eu tive com um comerciante que eu fui fazer um cadastro da empresa para poder faturar, para poder comprar materiais básicos de construção, e foi ele justamente que veio falar ‘Ah, é o apartamento do Lula, né’, mas não fui informada desde o início não, assim, documentalmente, eu não tenho nenhum tipo de documento que me foi formalizada essa informação.” (Parágrafo 500). É comum, nesses depoimentos dos funcionários da empresa responsável pelas reformas, perguntas sobre a postura de Marisa Leticia na visita ao apartamento. O sentimento das testemunhas sobre ser o comportamento dela de uma compradora ou de uma proprietária é utilizado para fundamentar a decisão. Afirma o magistrado no parágrafo 506: “Em uma das visitas de Marisa Letícia Lula da Silva, a testemunha afirma que teria mostrado a ela as dependências do condomínio e que, na sua opinião, ela se portava como uma proprietária do imóvel e não como uma potencial compradora”.

Leia abaixo a íntegra do artigo:

MORO, LULA E O TRIPLEX: NOTAS SOBRE UM JULGAMENTO

No dia 12 de julho de 2017 foi publicada a sentença do juiz Sergio Fernando Moro condenando o ex-Presidente Lula por 9 anos e meio de prisão por crime de corrupção e lavagem de dinheiro. A decisão, vertida em 238 páginas e 962 parágrafos, traz a justificativa e os fundamentos elencados pelo juiz Moro para a condenação pelo caso do apartamento tríplex no Guarujá. Chama a atenção no documento a fragilidade dos argumentos jurídicos, parecendo em várias passagens muito mais uma autodefesa do que propriamente uma condenação, circunstância típica de um juízo que, ao ter se envolvido pessoalmente na causa, perdeu a imparcialidade e a condição de legítimo julgador.

Notório entusiasta da experiência italiana com a operação Mani Puliti, considerada pelo próprio Moro em texto de 2004, como “uma das mais impressionantes cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa”, o juiz indica como decisiva a “deslegitimação da classe política” para o sucesso das investigações em casos de corrupção. Para alcançar este fim, Moro defende a aliança entre o judiciário e a opinião pública através de ampla divulgação da mídia sobre a atuação dos magistrados. Não por acaso os vídeos em que o próprio Moro pede apoio à população para a continuidade de sua cruzada. Quanto aos métodos adotados para a obtenção das provas, Moro é defensor entusiasmado da delação premiada, considerando que “crimes contra a Administração Pública são cometidos às ocultas e, na maioria das vezes, com artifícios complexos, sendo difícil desvelá-los sem a colaboração de um dos participantes”.

A sentença do Juiz Moro na Ação Penal nº 5046512-94.2016.4.04.7000 condenando o Ex-Presidente Lula além de refletir estas crenças e convicções, é também reveladora das dificuldades decorrentes da politização do direito e do modelo ativista de atuação judicial no Brasil. A sentença é em si mesma um atestado da perigosa utilização do direito para finalidades políticas, tal como acontece nas hipóteses de “Lawfare”, quando o direito é convertido em instrumento de guerra.

A função da jurisdição é dar respostas jurídicas para problemas jurídicos. A pretensão de responder politicamente a problemas jurídicos compromete a autonomia e funcionalidade do direito. É claro que, em se tratando do julgamento de um ex- Presidente da República e potencial candidato ao cargo em 2018, a dimensão política do julgamento estará sempre presente. Nesse caso, cabe ao julgador zelar pelo estrito cumprimento do direito, evitando a utilização política do processo, já que o espaço apropriado da política não é o judiciário, mas as ruas.

Na decisão do juiz Sérgio Moro, o relatório resume em 47 parágrafos a denúncia e a defesa, iniciando a fundamentação da decisão a partir do questionamento da defesa sobre a imparcialidade do julgador. Para tanto, a sentença traz um conjunto de decisões do TRF4 que chancelam decisões anteriores do juiz Moro na condução do processo, dentre elas, a exceção de suspeição diante de artigos acadêmicos publicados pelo juiz, as decisões sobre quebra de sigilo telefônico, condução coercitiva, busca e apreensão, relações com a imprensa, etc. Todo este percurso argumentativo se estende até o parágrafo 138, quando então a decisão se ocupa com a transcrição de trechos dos depoimentos nos quais o julgador teria supostamente sido ofendido pela defesa.

Dentre os vários aspectos da sentença merecedores de observação, escolhemos trabalhar com a as delações premiadas como estratégia processual e com alguns trechos da avaliação do universo probatório pelo juiz Moro:

As delações premiadas surgiram no Brasil com a lei 12.850 de 2013, sancionada pela então Presidente Dilma Rousseff. De acordo com a legislação, a delação tem por objetivo instrumentalizar a investigação e por isso, a delação não tem valor probatório em si mesma, devendo ser confirmada pelas provas que indica. É procedimento cercado de garantias, sendo direito do delatado nos termos no art. 5º, V, “não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito”. As delações são utilizadas por Moro como mecanismo fundamental para a formação/confirmação da sua convicção. O problema da delação é que ela pode praticamente se transformar em um instrumento de barganha. Se o delator falar algo que interessa ao juiz, terá o benefício, caso contrário, aplica-se o rigor da lei. Nesse contexto, a delação assume um papel fundamental. A decretação de prisão preventiva bem pode servir para forçar uma delação, assim como a soltura acaba sendo o prêmio para quem a praticou.

Para a comprovação da propriedade do tríplex, a sentença revela desproporção analítica, já que Moro reserva poucos parágrafos para analisar a tese da defesa. Para a acusação, o espaço dedicado na decisão é farto. Moro recorre inclusive a notícias de jornais para formar a sua convicção. O juiz transforma, em várias passagens da decisão, suposições de testemunhas em afirmações peremptórias. Por exemplo, quando afirma na sentença, sobre o depoimento de:” Segundo ela, a visita teria tido o objetivo de verificar se o apartamento estaria ficando bom com a reforma”. Na verdade, a testemunha respondeu à pergunta do Ministério Público sobre o objetivo da visita ao apartamento de Marisa Leticia e seu filho: “Olha, verificar o andamento da reforma, acredito que isso “. E, mais à frente, disse: “eu fiquei bem pouco perto deles, foi que ‘Ah, está ficando bom’, aí dá-se a entender que foi o que eles pediram” (parágrafo 488).

Boatos ouvidos pelas testemunhas também viraram provas. Na sentença é destacado do depoimento de Rosivane Soares que era “afirmação comum” no condomínio e na região que o apartamento era do presidente Lula. Disse a testemunha, respondendo se ouvirá falar de quem era o apartamento: “Sim, a maioria dos moradores do condomínio, os comércios na região, eu achei até surpresa quando eu comecei a trabalhar lá, que eu não sabia dessa informação, e eu fui informada, até a primeira eu tive com um comerciante que eu fui fazer um cadastro da empresa para poder faturar, para poder comprar materiais básicos de construção, e foi ele justamente que veio falar ‘Ah, é o apartamento do Lula, né’, mas não fui informada desde o início não, assim, documentalmente, eu não tenho nenhum tipo de documento que me foi formalizada essa informação.” (Parágrafo 500). É comum, nesses depoimentos dos funcionários da empresa responsável pelas reformas, perguntas sobre a postura de Marisa Leticia na visita ao apartamento. O sentimento das testemunhas sobre ser o comportamento dela de uma compradora ou de uma proprietária é utilizado para fundamentar a decisão. Afirma o magistrado no parágrafo 506: “Em uma das visitas de Marisa Letícia Lula da Silva, a testemunha afirma que teria mostrado a ela as dependências do condomínio e que, na sua opinião, ela se portava como uma proprietária do imóvel e não como uma potencial compradora”.

A aliança do juiz com a opinião pública (que Moro defende e cultiva) patrocinada pela grande mídia nacional transformou as provas em mero detalhe procedimental. Quando as provas (ou a ausência delas) não falam por si mesmas, toda e qualquer decisão torna- se imprevisível, flutuando ao sabor da conveniência do momento.

A sentença é assim, não apenas reveladora de uma perigosa expansão da jurisdição no Brasil, apresentando também medidas típicas de um regime de exceção democrática. Não há julgamento verdadeiramente justo com o cerceamento do direito de defesa e com a predominância de ilações e conjecturas por parte do julgador a conduzir decisivamente o curso do processo.

A decisão que condenou o Presidente Lula não está fora de contexto. Insere-se em um processo de expansão do poder dos juízes. Processo que já preocupava quando diagnosticado nas estratégias argumentativas adotadas na jurisdição constitucional. Agora, quando se aloja na justiça criminal, faz acender uma luz amarela. Sem freios, assistiremos a novos espetáculos de decisionismos e voluntarismo nos próximos anos.

Quando pessoas investidas dos poderes especiais de magistrado sentem-se à vontade para decidir da forma como bem entenderem, sem necessidade de observar regras, orientadas apenas por seu senso pessoal de justiça, todos estamos ameaçados. Bases do Estado de Direito são corroídas. Ficamos à mercê da reação de uma autoridade sem limites, que tudo pode.

Na clássica tipologia weberiana das formas legítimas de dominação, a dominação carismática é caracterizada pela crença em qualidades extra-cotidianas do governante. Aí, inserem-se demagogos e caudilhos. O que o Juiz Moro tem feito é um típico um apelo às massas, próprio de democracias cesaristas, algo problemático quando tratamos do Chefe do Executivo, mas especialmente preocupante quando falamos de alguém responsável pelo exercício da jurisdição.

(Site Dilma.com)

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