Padilha e especialistas apontam erros em ‘cascata’ que levaram o País a falta de vacinas

Uma série de equívocos cometidos pelo governo federal e em níveis estadual e municipal atravancou a imunização contra a Covid-19 no Brasil e, caso esses erros não sejam corrigidos, adiarão ainda mais o retorno à normalidade em um cenário em que há poucos imunizantes no país. A avaliação é de especialistas ouvidos pelo GLOBO, que foram unânimes: a escassez de doses que já paralisa a vacinação em diversas cidades brasileiras não só era esperada como deveria nortear uma política de priorização das localidades mais afetadas pelo coronavírus.

Os problemas começaram na fase pré-campanha, quando a única aposta do governo era a vacina desenvolvida pelo laboratório AstraZeneca com a Universidade de Oxford, por meio de acordo com a Fiocruz. O Brasil demorou a assinar acordos para a aquisição de outras vacinas.

O ex-ministro da Saúde e atual deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) avalia que o Brasil perdeu uma série de oportunidades para assegurar um contingente de doses suficiente para imunizar o grupo prioritário antes de o começo do inverno e toda a população apta a ser vacinada até agosto deste ano.

“Todas as empresas internacionais queriam trazer vacina para o Brasil, que tem uma tradição com seu Plano Nacional de Imunização. Incorporar uma vacina ao SUS é um cartão de visitas importante para qualquer empresa e para o sistema da OMS”, diz Padilha, que faz parte da Comissão Externa de Covid-19 da Câmara. “O governo federal foi o tempo todo omisso, negou-se a efetuar contratações. No acordo com a Covax, o Brasil tinha direito a chegar a até 50% da cobertura populacional e optou pela cota mínima, de 10%”.

“Em fevereiro do ano passado, já sabíamos que só iríamos superar a Covid-19 com uma estratégia de vacinação em massa. A ciência deu a resposta, o governo se omitiu”, avalia o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, que comandou a pasta no segundo governo Lula (2007-2011).

Aposta arriscada

A epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunização (PNI), afirma que a aposta única foi arriscada. “A AstraZeneca ainda não conseguiu entregar vacinas. Felizmente, temos o laboratório público Butantan, que fez um acordo (com a chinesa Sinovac) à revelia do próprio Ministério da Saúde. Do contrário, não teríamos doses disponíveis no Brasil”.

No contexto em que o aporte de vacinas do país é insuficiente, Domingues avalia que a distribuição das doses Brasil afora foi equivocada. “Era fatal que houvesse desabastecimento. O que poderia ter minimizado essa situação era ter concentrado a vacinação nos municípios com maior incidência da doença, onde há mais mortalidade, e ter imunizado o maior número possível de pessoas, em vez de pulverizar os imunizantes em municípios onde nem sequer há casos neste momento. Haveria diminuição do risco de pessoas adoecerem neste momento em locais com alta taxa de infecção”.

A epidemiologista Ethel Maciel concorda. “A vacinação em Manaus deveria ser maior. Temos que olhar o Amazonas e a Região Norte toda de forma diferente. É um erro muito grande, deveríamos vacinar em massa lá para evitar uma terceira onda. Mas não sabemos o que está acontecendo no Brasil. Há um vácuo no que chamamos de inteligência em vigilância epidemiológica”.

Ela lembra que, no fim de janeiro, o governo federal alterou o planejamento das fases e colocou todos os grupos, antes definidos em ordem de prioridade, em um único agrupamento prioritário, sem definir escalas de prevalência. A falta de uma coordenação central, somada ao início da vacinação poucas semanas após a posse de prefeitos recém-eleitos em diversos municípios, resultou em desencontros.

“Não foram elencadas as prioridades de acordo com as doses, não se definiu quem seria a prioridade da prioridade enquanto tínhamos 6 milhões de doses para começar a campanha. O governo federal deixou que cada estado e município definisse. Aí começou um erro em cascata”, afirma Maciel, pontuando que esses gestores ficaram sujeitos a pressões locais. “Além disso, não tivemos uma campanha de comunicação oficial. As pessoas ficaram confusas”.

Programa Nacional de Imunização

Carla Domingues lembra, ainda, que a falta de um critério nacional para as populações prioritárias levou a uma “leniência” onde cada parte adotava o que quisesse como prioridade. “Com poucos insumos, era preciso um pacto nacional para que governo federal, estados e municípios olhassem criteriosamente onde seriam usados da melhor forma. Decidiu-se pelo caminho de não ir para o enfrentamento, porque seria necessária uma negociação. Foi distribuído um pouco para cada município para fingir que havia uma campanha, e os prefeitos foram para a frente das câmeras vacinando algumas pessoas”, diz a ex-coordenadora do PNI.

Ainda segundo Maciel, a falta de treinamento das equipes das salas de vacinação também abriu espaço para desperdício de doses que sobraram após a abertura dos fracos, já que muitos profissionais sem orientação adequada se sentiram inseguros com a judicializações.

Padilha pondera que o PNI já estava enfraquecido antes da pandemia de Covid-19, com o corte sucessivo no orçamento. Para ele, o programa foi desmontado. “Havia comitês técnicos, de especialistas, e uma relação com os programas de imunização dos estados e municípios. Isso construiu uma coluna vertebral técnica, que ia de Brasília até cada cidade e secretaria estadual, movendo as indicações técnicas, dos grupos prioritários, o planejamento em relação à refrigeração. Isso foi desmontado já desde 2019, quando o governo federal mandou proposta de orçamento retirando quase R$ 700 milhões do PNI, afetando renovação de cadeia de frios, capacitação técnica de equipes, formação de novos agentes de vacinação e a organização da fila”.

Apesar do desgaste, Temporão acredita que o PNI não sairá terminantemente abalado diante dos problemas na campanha atual. Mas a Covid-19 terá cobrado seu preço. “O PNI sobreviverá a todo esse lamentável processo. Mas as perdas de vidas e o impacto negativo na vida econômica e social são irrecuperáveis”.

Por Jornal O Globo

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