O Peso das Palavras: Desigualdade e Tratamento Diferenciado no Parlamento

Deputada Reginete Bispo. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

(*) Reginete Bispo

Vamos analisar a forma como as palavras são tratadas no Congresso Nacional, mais especificamente no Plenário da Câmara dos Deputados, também conhecido como parlamento. Parece evidente que a avaliação do impacto das palavras é feita com pesos diferentes e medidas distintas.

O peso das palavras também está relacionado a quem as pronuncia. Por exemplo, quem pronuncia assassino? Segundo o dicionário Priberam da língua portuguesa, o termo “assassino” pode ser utilizado no sentido figurado para designar algo ou alguém que “destrói ou prejudica o que é essencial ou digno de ser respeitado”. Nesse contexto, é importante refletir se os povos e territórios indígenas são considerados essenciais para a política brasileira. Respondendo à pergunta inicial deste parágrafo, quem pronunciou o termo “assassino” foi Juliana Cardoso, uma mulher, deputada federal, quatro vezes vereadora de São Paulo, afro indígena e militante na defesa dos direitos do povo e das mulheres das periferias urbanas.

Agora, vamos analisar a palavra “imbecil”. Quem a pronunciou? O nome em questão é Zé Trovão (PL-SC). É interessante observar o significado da palavra “trovão” no dicionário: é um substantivo masculino que se refere a um “ruído estrondoso que acompanha a descarga de eletricidade atmosférica e, por extensão, significa um grande barulho comparável a esse ruído estrondoso”.

Na biografia da Câmara dos Deputados, é mencionado que Zé Trovão é deputado federal, motorista, vendedor e possui ensino médio completo. Até recentemente, o parlamentar usava uma tornozeleira eletrônica, pois estava sob investigação no inquérito dos atos antidemocráticos, tendo sido preso preventivamente por desrespeitar ordens judiciais.

É difícil continuar a análise das palavras após sentir o peso de compartilhar o parlamento com um parlamentar investigado por atentar contra a democracia. Não posso prosseguir sem reforçar o significado da palavra: democracia é um substantivo feminino que significa um “governo em que o povo exerce a soberania, direta ou indiretamente”.

Após essa pausa necessária, vamos retomar a análise do peso das palavras. “Imbecil” é um adjetivo e substantivo que se aplica a pessoas de ambos os gêneros,

significando alguém que demonstra pouca inteligência ou discernimento, alguém que manifesta imbecilidade.

Agora, considerando a biografia da deputada Juliana Cardoso, disponível em seu perfil na Câmara dos Deputados, vemos que ela é gestora pública de formação e possui mais de 10 obras publicadas. Além disso, ela foi vereadora de São Paulo por quatro mandatos consecutivos e tem se destacado como parlamentar, demonstrando conduta impecável. Portanto, é incompatível chamá-la de pouco inteligente.

Essa incompatibilidade é evidente em todos os aspectos. Após usar sua prerrogativa de falar no parlamento para defender o direito legítimo dos povos indígenas e originários de terem suas terras demarcadas, Juliana foi levada ao Conselho de Ética da Câmara dos Deputados e acusada de quebra de decoro parlamentar. O Código de Ética da Casa considera falta de decoro parlamentar, entre outras coisas, “praticar ofensas físicas ou morais nas dependências da Câmara ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ou comissão, ou os respectivos presidentes”. No entanto, fica claro que existe um critério diferente para avaliar o que é ou não uma ofensa. Se a parlamentar, visivelmente afetada como mulher indígena, expressa figurativamente o adjetivo “assassino” após ver deputados votarem a favor de um projeto, PL 490/2007, que impede seu povo de permanecer em suas terras, comprometendo sua subsistência, alimentação, modo de vida e sustento de suas famílias, isso é considerado uma ofensa.

Por outro lado, quando um homem, com nome estrondoso e usando um chapéu, exclama a plenos pulmões a palavra “imbecil”, isso não é considerado uma ofensa? Afinal, o que é uma ofensa? É um “ato ou efeito de ofender, afronta, desacato”. O dicionário não faz distinção de que a ofensa só é uma ofensa se for proferida por uma mulher indígena. Portanto, é de se supor que o parlamentar homem, que chamou a deputada federal de imbecil, também deveria ser considerado ofensivo!

Após transcrever as palavras, seus pesos e significados, chego a uma possível razão para tanta diferença nas consequências das ofensas proferidas por parlamentares. A conclusão dessa análise não pode ser objetiva porque a desigualdade no tratamento das atitudes e palavras na sociedade é resultado dos males estruturais do racismo e machismo em nosso país.

A Lei nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023, define racismo como o ato de injuriar alguém, ofendendo sua dignidade ou decoro, com base em raça, cor, etnia ou procedência nacional. Já o Projeto de Lei 1086/23, enviado pelo Presidente Lula ao Congresso Nacional, institui o Dia Nacional Marielle Franco de Enfrentamento da Violência Política

de Gênero e Raça, a ser lembrado anualmente em 14 de março, com o objetivo de conscientizar a sociedade a respeito das violências sofridas pelas mulheres no ambiente político, em especial, mulheres negras.

No Brasil, um país originalmente habitado por indígenas e que escravizou pessoas negras de vários países africanos por mais de 300 anos, não é surpreendente que um homem, que se autodenomina representante do povo, insulte uma mulher que ouse defender sua continuidade. Desde o início da colonização, tem havido uma persistente tentativa de branqueamento e higienização da população brasileira. Estamos no parlamento, nós, mulheres negras e indígenas, sub-representadas, lutando diariamente por respeito e pela dignidade de nossos povos, sofrendo constantemente violências silenciadas e ignoradas por nossos pares.

Após a tentativa de silenciar Juliana, o mesmo partido, PL, acusador de mulheres protocolou ações pedindo a perda de mandatos de mais seis mulheres parlamentares, alegando suposta quebra de decoro. No entanto, suas tentativas de nos criminalizar não terão sucesso. Continuaremos unidas na luta pelo pleno exercício dos direitos e liberdades políticas fundamentais. Sob a liderança da ministra Cida Gonçalves, o Grupo de Trabalho Interministerial foi estabelecido para elaborar a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Política contra as Mulheres, o que evidencia nossa união na batalha.

Como mulher negra, deputada federal e mãe, também fui vítima de tentativas de desqualificação por parte de parlamentares que utilizaram montagens e notícias falsas para disseminar mentiras sobre mim nas redes sociais. Eles incitaram seus robôs a propagarem calúnias e racismo sem medo, amparados pela suposta impunidade proporcionada pela internet. No entanto, estamos alertas e vigilantes. Não permitiremos que nos silenciem. Somos Marielles, Julianas, Dandaras, Beneditas e Reginetes. Nossas vozes se unirão em coro, reivindicando equidade, dignidade e bem-viver para todas e todos.

Reginete Bispo é Deputada Federal, sócia fundadora do Instituto Akanni, integrante do Movimento Negro Unificado (MNU), da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e integra a Coalizão Negra Por Direitos.

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